Em meio ao intenso debate e a, sintomaticamente, servil disposição do Governo Lula com relação ao corte de gastos federais, supostamente necessário para honrar o famigerado “Arcabouço Fiscal” (entenda “disciplina no pagamento da dívida pública aos rentistas), começa a eclodir um fantasma temível nas redes sociais brasileiras.
Diante de um consistente e crescentemente popular trabalho de agitação pelo fim da jornada de trabalho “6X1”, volta ao centro da cena nacional a luta mais característica do que realmente importa em nossa sociedade de classes: a disputa pela jornada de trabalho, ou seja, pelo tempo de trabalho necessário e o trampo de trabalho excedente (aquele tomado pelo patrão e pelo qual não se paga nada).
Não tardará para que os profetas contemporâneos da velhaca cantiga do fim da história venham acusar de anacronismo e “marxismo cultural” a proposta de redução que, no projeto atual, prevê-se que não apenas impeça a imoral escala 6x1, mas permita a instauração da escala 4x3.
Por ora, soam desajeitadas e danosas para as figuras de uma direita populista, fisiológica ou bolsonarista, ambas recentemente fortalecidas eleitoralmente, as tentativas de desqualificação da pauta.
Soa mal a acidez ansiosa contra o projeto para uma população cuja realidade é a de quase 40% de trabalhadores informais precários e que, quando formais, tem tido sua vitalidade básica cotidianamente sugada pelas comorbidades físicas e mentais adquiridas num modelo de trabalho que esgota, adoece e mata.
Enquanto vociferam contra a bandeira da redução chacoalhando o espantalho de que o país vai quebrar, as empresas não vão mais produzir, os investidores da entidade “O MERCADO” vão sair do país e levar seus dólares, a direita populista em geral tem demonstrado em praça pública, logo após um resultado eleitoral muitíssimo favorável, que é o que sempre foi: testa de ferro e representante leal e canino dos empresários e rentistas, ou seja, da burguesia brasileira e seus interesses estrangeiros associados.
E é aqui que se apresenta a situação mais importante dos últimos anos e, com certeza, das últimas décadas para uma esquerda efetivamente comprometida com os trabalhadores e que busca seriamente se unir e dar expressão a sua luta.
Após eleições municipais sofríveis para o campo da (mal) chamada esquerda progressista, em que a direita bolsonarista e fisiológica impôs derrotas sérias na maioria das capitais e cidades médias, inclusive na joia da coroa, São Paulo, a classe trabalhadora demonstra de forma cada vez mais abrangente e consciente que anseia e está disposta a lutar pela melhoria de suas condições de vida e seus interesses seguem ao redor de sua luta histórica de classes.
É um golpe mortal que a realidade impõe à natimorta teoria do “Pobre de direita”, recentemente revivida por Jessé de Souza, de braços dados com a recalcada noção de uma “classe média fascista”, tal como exposta, a grosso modo, por Marilena Chauí.
Aqui, nessa interessante quadra histórica, o peão brasileiro do século 21 demonstra que sua consciência não flutua ao redor de abstrações e promessas metafísicas, tal como se fosse um estúpido trabalhando ativamente contra si mesmo, um escravo
voluntário. É supérfluo ter de negar que isso possa acontecer. É claro que há exceções.
No entanto, em geral, o trabalhador tem demonstrado e demonstra na atual onda pela redução da jornada nas redes sociais que luta para diminuir sua exploração, pela melhoria da sua condição material, por mais do seu tempo a sua disposição, por uma maior parcela do progresso social em seu favor.
Ao fazê-lo, talvez se apresente para os socialistas e revolucionários, ainda que poucos, uma oportunidade histórica única, uma janela que permite que seja formada um movimento de potencial transformador para décadas no futuro.
A dificuldade dos populistas de direita, por si só paradigmática, demonstra uma das enormes oportunidades que se abrem com o avanço dessa proposta: uma aliança ampla entre a quase totalidade da classe trabalhadora e camadas amplas das classes médias urbanas e mesmo de setores da pequena burguesia. A repercussão cada vez mais explosiva da campanha nas redes sociais é um nítido sinal desse caso.
Ironias típicas da história se apresentam comumente assim. É próprio de sua natureza dialética e contraditória. Após uma derrota eleitoral gritante da dita esquerda, os mesmos trabalhadores que colocaram a extrema direita e fisiológicos nas prefeituras, demonstram que não se integram a ela, mas defendem seus interesses contra os interesses de seus mandantes, pegos nus em praça pública como fantoches do empresariado.
Ainda mais importante para os embates futuros é a possibilidade de enormes avanços de consciência e percepção, num sentido revolucionário, que podem alcançar gerações inteiras de trabalhadores, desde os estafados por anos de exploração, até os jovens da geração Z, muito mais conectados e que começam a se chocar com a realidade fria e cruel da exploração capitalista. Da luta é que podem surgir novos quadros, lideranças e dirigentes capazes da classe trabalhadora.
O problema da jornada de trabalho remete a luta mais fundamental em uma sociedade de classe, qual seja, a luta pela mais valia, pelo trabalho excedente. Ou seja, ao tocar no problema da jornada, os trabalhadores, mesmo inconscientemente, estão tateando o terreno sensível da joia da coroa do capitalismo: a exploração do trabalho e seu uso como motor da acumulação de riqueza, de Capital, num polo minoritário da sociedade. Assim, estão abrindo caminho em meio a selva da ideologia para entender a razão fundamental da miséria de suas vidas.
O fato de que vivem para trabalhar e trabalham para viver soa, para todas as gerações de trabalhadores, como uma verdade natural e, até certo ponto, inquestionável.
Tal como no caso de todas as transformações profundas, as mudanças se iniciam quando a degeneração, o desânimo e o esgotamento se tornam insuportáveis e fazem a temperatura dos peões atingirem grau explosivo. É esse nosso caso.
Em meio ao combate pela redução da Jornada 6x1, os trabalhadores podem passar a se perguntar porque é que ele é que deve realizar todos os sacrifícios sociais, enquanto recebe apenas o mínimo suficiente para não morrer de fome e vê a opulência gerada por seu trabalho se acumular nas mãos, festas, vernissages e orgias de poucos parasitas.
Pode começar a questionar a natureza das coisas, o caráter inquestionável de um tipo de trabalho extenuante e explorado, dos baixos salários, da ditadura decisória dos chefes e patrões, da própria existência do desemprego.
Daí, não apenas a redução, mas a imposição de uma jornada móvel de horas de trabalho e salários, garantido um mínimo, a depender da disponibilidade de trabalho e do preço dos produtos, para que todos os trabalhadores tenham um emprego digno e sustento, tornam-se ideias concretizáveis, plausíveis e de acordo com seus interesses.
O curso da luta de classes não é linear.
Simplesmente não há garantias de que todas essas conquistas podem se implementar. Sobretudo porque uma sociedade sem desemprego significa uma sociedade planificada e socialista, um estágio superior a essa realidade capitalista de exploração, que depende de montanhas de miseráveis desempregados para manter aterrorizados e dóceis os que trabalham e que devem aceitar baixos salários e humilhações.
O curso dos acontecimentos nesse sentido, entretanto, oferece aos socialistas uma oportunidade única de apresentar seus planos e visões para uma nova sociedade, socialista, que produza o suficiente para todos, distribua igualitariamente a produção, empregue e acolha a todos os que trabalham e que instaure um regime político realmente democrático e renovado, superando essa falsa democracia burguesa baseada na compra e engano do voto pelas balas e bíblias e nas decisões de governo e parlamentares compradas por emendas e jantares.
No caminho se apresentam diversas encruzilhadas.
Se, por um lado, é engraçado vislumbrarmos nulidades históricas da extrema direita do tipo, Kataguiri, Nicolas Ferreira ou Eduardo Bolsonaro, desidratando cada vez mais suas bases por mostrarem que servem as mãos pútridas do Capital, por outro, não devemos esperar que o desarranjo dure muito.
A direita golpista e seus aliados hesitantes midiáticos tem demonstrado flexibilidade suficiente para se adaptarem a situação de impermanência dos humores das classes médias e dos trabalhadores. Essa operação de desvio e manejo começa no desvio de 2013 e segue entre lavas jatos, bolsonaros e tarcísios até hoje.
Olho aberto e avanço em programa e prática, com atos de rua, paralisações de locais de trabalho, cobrança e imposição de posição aos sindicatos pelegos para que se somem e determinação de exigir IMEDIATA APROVAÇÃO DO FIM da Jornada 6x1, são a garantia para impedir que as mentiras, o terrorismo midiático, as ameaças e prováveis atentados contra lideranças contra o movimento ganhem respaldo.
Por outro lado, também espreita o canto da sereia da democracia liberal, justamente o embrulho desse pacote de excrementos que é a sociedade capitalista, contra o qual os trabalhadores já demonstraram se colocar, seja no índice recorde de abstenções nas eleições municipais, seja na tomada explosiva e crescente de posição em favor da luta contra a 6X1.
Esse canto da sereia, expresso nos posicionamentos de parlamentares do social liberalismo, ou seja, dos capitalistas “do bem”, presentes no atual governo Lula, no PT e em parte expressiva do PSOL, é uma continuidade da perigosa absorção e integração que sofrem pelas regras do jogo da “conciliação” de classes, ou seja, do acordo “de paz” desigual, dissimulado e desleal, mediante o engano, entre os pobres e trabalhadores e os os ricos e exploradores, seus reais beneficiários.
Essa absorção se expressa, além das realidades dessas organizações, nesse caso, em falas de Hilton sobre como o PL pela redução seria apenas uma “provocação” para levar os empresários a sentarem com eles e com “representantes” dos trabalhadores para pactuarem uma nova forma de trabalho.
No mesmo sentido vão as tentativas de conciliar a proposta com um suposto viés técnico baseado na possibilidade de “melhorar a vida dos trabalhadores” enquanto “aumenta e melhora a produtividade e competitividade das empresas”. Restaria perguntar: produtividade para que? E para quem?
Igualmente indignantes são os exemplos de covardia no início de uma luta histórica expressa por representantes desse tipo de esquerda, tentando barganhar com alguma ficção de empresariado esclarecido que a redução seja gradual, um ano a cada ano por cerca de dez anos, como um sinal de boa fé e gentileza que os escravos devem apresentar para a mão que os chicoteia.
Trabalhadores excluídos da vida social, absorvidos pelo cotidiano do trabalho assalariado cada vez mais evidente em seu caráter compulsório e escravizado socialmente, que vivem de aluguel por toda a vida, de salário em salário, sem prazeres ou economias, apinhados nos ônibus e metrôs lotados, nas filas de hospitais, sacrificados como animais pela polícia ou pelas doenças laborais, tem o que a ganhar com a competitividade? Deveriam se preocupar com lucros ou adequações do patrão por que razão? Essas preocupações devem valer mais do que suas necessidades e interesses imediatos?
Essas são as vias para esvaziar as ruas, mentes e corações e inflar a democracia liberal em crise (em todo o planeta), enquadrando as demandas populares, vestindo-as com as cores aceitáveis, suavizando, domesticando e desidratando o ânsia de mudança popular, posando como suposta via de solução das conquistas sociais, quando são, na realidade, sua cova.
Ocorre que, como a “antiga pauta absurda” de sua época (o décimo terceiro salário; ou a jornada de 8 horas; ou o voto ferminino; ou as férias; ou o salário mínimo; ou a reforma agrária; ou a abolição da escravidão) toda grande conquista social (e política, organizativa e ideológica) só vêm como subproduto de uma luta revolucionária, até as últimas consequências, apoiada numa ação decidida e consciente de trabalhadores que sabem pelo que lutam.
Essa ação é chave para a mudança profunda e sustentada da correlação de forças, tirando da defensiva as ideias e práticas de uma esquerda classista e trabalhadora, ao mesmo tempo em que desmascara seus inimigos históricos expressos no famigerado centrão, bolsonarismo e em toda a gangue de fantoches da burguesia brasileira e associada.
Às ruas, aos locais de trabalho, em cada canto do país é preciso lutar e dizer que a luta pela redução da jornada é uma luta pela vida dos trabalhadores e pela transformação de sociedade de misérias! É possível uma vida digna, revolucionada, solidária, coletiva e socialista!
Essa luta é a chave para abrir as portas de uma nova situação para a organização, consciência, condições de vida e luta por transformações profundas pelos trabalhadores.