sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Cacofonia

 26 de dezembro. 1:30 da manhã.


As luzes da goma já se apagaram. A coroa foi pra cama, a véia pro seu quarto. 

Restam a mim, o pigas e o Cão sentados no escuro da sala. Na TV, meti uma série.

 

Engano pensar que conseguiria me concentrar. 


Lá fora, estrondos de bombas de tamanhos sortidos se engalfinham com o rugido trepidado das motos no grau. 

Um bagulho de tremer parede.


Uma cacofonia eufórica jorrando por quase uma hora na quebrada. 

Dá pra sentir as aceleradas, os batuques, as músicas, todo aquele rugido se chocando entre si, entre ruas, entre as curvas e esquinas apertadas. 


Aos poucos, a cacofonia muda de forma, se condensa e vai ganhando estabilidade, ora num samba na esquina de cima, ora num funk lá no pé do morro... 

Dá até pra ouvir o tecnobrega na Rua do Bailão. Nesse ritmo, a coisa vai até o sol aparecer. 


Pelas ruas, as brigas, xingos, motos e barcas cruzam-se (des)harmonicamente sem parar. 


Acendo o pigas e começo a ouvir o ronco da véia. Conseguiu pegar no sono. Trampou pra porra hoje. Tava uma delícia o rango, aliás. Amanha vou pedir una marmitinha.

Saio pela porta e me debruço pra desbaratinar por uns minutos na sacada lendo as entranhas de asfalto.


Da vista privilegiada, posso ver quase toda a quebrada. Uma parte enorme, de qualquer forma. Um milhão de pessoas enfurnadas neste mosaico de telhados e muros colados? Um pouco mais?


Todo fim do ano é esse movimento, uma espécie de antesala da Festa de Ano Novo, uma verdadeira descarga de energia periférica e popular, após um ano do cão. 

Muitos sofreram e se perderam. E muitos fizeram calados. Natural que em algum momento se façam ouvir.


Não há dúvidas, no entanto, que esses peões tem voz. A cacofonia da periferia é a prova inequívoca disso. 


O dramático é que sejam dispersas, sem sincronia, sem harmonia, numa miscelânea de ruídos potentes, presentes, legítimos, mas, ainda assim, ruídos e, portanto, desorganizados, fáceis de se consumir rapidamente, engolidos num silêncio ou noutros barulhos afins...


Drama mesmo vai ser quando a gente (re)descobrir a potência de falar junto, a beleza e força de cantar em harmonia, sincronizados na voz e no braço.


Apago o pigas e volto pra série. 

Antes de fechar a porta outro nexo se forma em meio aos ruídos. Um louvor começa a se estabelecer na casa da Dulce. 


No andar debaixo do predinho, vejo a janela com cortina vermelha ascender. Ixe... É o Cléber.


Um puta estrondo engole o culto. Uma sinfonia....

Caralho, o Cléber é foda kkkkk


Em pleno natal, o cara calou o louvor com a Internacional!!!