terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Olhos azuis de fome


Tudo se passa como uma cena, daquelas insólitas que a cidade tarda mas sempre, vez ou outra, volta a impor a cada dia.
Terça a tarde, duas pessoas sentadas em cadeiras de madeira - aquelas vazadas que todo botequim tem- discutem sobre as mais diversas questões, sua saudade, a política nacional, os problemas corriqueiros que toda vida de jovens como eles, trabalhadores e estudantes, apresentam.

A conversa é um belo Zig Zag de relatos, risadas, histórias, que preenchem a tarde com uma sensação gostosa de estabilidade e “segurança”. É claro que, neste papo, tem um pouco de assunto desconfortável, afinal, na vida, se não tem algo que te pinica, quer dizer que algum problema mais profundo é o que te persegue. É só questão de tempo para aparecer.

Como se encontram no início da tarde, nenhum dos dois, uma garota e um jovem, puderam cumprir o ritual cotidiano biológico e, sobretudo, social de sentar-se a mesa e satisfazer aquela vontade fraca que começa logo cedo e vai progredindo até chegarmos a definir, ema lgum momento, como “fome”. É claro que esta não é uma sensação absolutamente insuportável. Está mais para um tic-tac que começa a tilintar quando se dá o horário de pagar os tributos ao ritual.

Como estavam fora de casa foram buscar algum lugar para comer. Nada muito caro ou espalhafatoso, afinal, num país como este, comer com alguma frequência um prato de 10 reais, para um trabalhador, já o torna quase um felizardo, já que com salários de 500 por mês e todo tipo de gambiarra que sofrem os trabalhadores por aí, comer fora todo dia é inviável.

Sentaram, então, num Bar de esquina, para ver se pediam algum PF (vulgo, prato feito) e foram atentidos por um cara, de avental, que lhes deu as opções. O prato do dia era Frango ensopado e Costela ao molho. Com a fome que começava a tilintar, o calor pré-cambriano e a pequena preguiça, decidiram sentar-se e comer ali mesmo.

O Boteco tinha algumas mesas lá dentro mas, como o calor era forte, decidiram ficar numa mesa fora, sentados nas cadeiras de madeira, com suas bolsas e tudo mais. A comida que chegou, em seguida, era pra não se por defeito: Salada, Carne, um refrigerante e o bom casal arroz e feijão.
De fato, nada espalhafatoso; um bom e velho PF a que, em tese, todos deveriam ter o direito.

Conversa vai, conversa vem, as questões que se discutem variam, desde as inimizades ácidas que se desenvolvem, até os planos de projetos, reflexões e idéias tão presentes em suas preocupações e então, eis que uma pausa inesperada aborda o casal e seu ritual.

Sua voz é muito fraca, saindo dos lábios que, com força, tentam irromper e se distinguir das profundas rugas, verdadeiras falésias faciais, que demonstram sua muita idade e experiência.
Esta expressão, recém distinguida, faz parte de um todo muito simples: Um charpe na cabeça, enrolado do topo ao pescoço, protege sua expressão e seus cabelos brancos e lhe dá a aparência de retirante. Nas mãos, algumas sacolas cheias de coisas. Nos ombros, uma pequena maleta pressiona suas costas, levemente torcidas a frente, como que se curvando. No corpo, um pequeno vestidinho, maltratado e todo dobrado. E, finalmente, acima destes lábios, se erguem as pálbebras que mostram dois olhos, azuis como o céu, estritamente contidos por uma expressão de dúvida, medo, vergonha e tristeza.

O casal interrompe o ritual a que se dispuseram e olham com atenção aquela senhora. Escutam, então, esta voz fraca lhes perguntar de maneira envergonhada: “Pode me dar o ossinho mocinha?”. O casal, ainda desnorteado, entende então que ela fala do osso do frango ensopado, já comido, que haviam pedido. A senhora mantém o olhar fixo ao casal, repetindo a pergunta com uma sugestão: “Pode ser só o
ossinho que tá bem, menina. A gente que já comeu coisa na rua, tá acostumado...”.

Aquela não era uma cena tão “alienígena”, nem na vida do casal, nem na vida de milhares de paulistanos. O que surpreendia, no entanto, era a idade e a expressão da senhora.
De imediato, impactados com a situação, a jovem trata de dizer a senhora que podia comer com o casal, havia sobrado muita comida, costela e frango, e não tinha problema algum. Separam a comida em um prato, pedem um garfo, arrumam uma cadeira para que se sentasse a mesa e pede para que ela se sente.

A senhora, como que numa reação instintiva, repete ao rapaz que “não precisa moço, os homem daí não vão gostar, pode me dar só a comida que eu vou embora...”, enquanto a jovem ajeita as coisas para ela se sentar.

A senhora, como que agradecida e espantada, frente ao prato de comida feito, retira uma sacola de sua bolsa, com uma latinha, talvez recém recolhida, inclina-se sobre a mesa pegando o prato e o garfo, afasta a cadeira na qual iria sentar e diz, com uma expressão triste e aguda, porém, agradecida, aos jovens:
“ Isto não está certo moça, não posso sentar, os homem não vão gostar. Eu como aqui mesmo” e termina colocando toda a comida na sacola plástica suja, pra seguir sua caminhada.

Os dois jovens, estarrecidos, nesse momento, insistem a senhora que se sente, de que não há problema e, quando esta despeja a comida na sacola, são tomados por uma sensação difícil de descrever, de tristeza mista com frustração e de profunda impotência enquanto olham aquela senhora, de, quem sabe, uns 70 ou 75 anos, abrir novamente seus olhos azuis, dar-lhes um sorriso que irrompe das rugas e andar, com a dificuldade de sua idade, rumo ao desencontro...

Esta é um cena que choca o casal. Ao olhar para a moça que está com ele, o jovem percebe que escorrem lágrimas de seus olhos, uma forma de solidariedade que não encontrou represas. Alguns minutos são tomados pelo silêncio que se impõe. São difíceis as conclusões do casal. Uma crueldade sem tamanho acabou de bater-lhes a porta.

A senhora, do início ao fim, tratou de manter os rituais com aquele casal ao qual, tão desesperadamente, pediu ajuda. Não podia, mesmo desesperada por algum alimento, incomodando a refeição de alguém, pedir algo além de um Osso, para comer. O ritual não permitiria.

Da mesma forma, sua expressão, seus olhos fechados, suas rugas profundas, suas costas curvadas, a forma envergonhada e inocente de abordar, perceberam mais tarde o casal, não vinham da biologia ou anatomia, mas da imposição cruel e fria do hábito da sujeição que, nesta sociedade capitalista degenerada e podre, são a especialidade da casa.

Pensaram o casal: “De onde veio esta senhora? Por quais infernos passou? Qual foi a tragédia de sua vida? Será que tem família?”, perguntas que, sabem, jamais encontrarão a resposta e que, a cada esquina, poderiam fazer a cada jovem, morador de rua, desencantados com a crua vida na cidade do capital.

A senhora, ao se negar a sentar, não apenas tinha certeza do quão inviolável é o Ritual no qual estavam os jovens, uma lição certamente ensinada a ela por um sem número de maníacos e degenerados, donos de bar, policiais, guardas civis, todos sádicos espancadores de mendigos, como sabia qual seu papel num ritual muito maior.

Este ritual é uma coisa chamada
luta de classes. Seu olhar, sua expressão, sua negação a sentar-se na mesa com os jovens, além do medo da reação de desconhecidos trogloditas, era a expressão de o quanto, em sua cabeça, ela se vê como um ser inferior, um animal destinado a comer ossos e guardar comida em sacos imundos, sendo que, para um ser como este, é um “pecado” sentar-se na mesa, em pé de igualdade, com qualquer um.

Muitos são os nomes que, certamente, esta senhora já recebeu, numa sociedade decomposta, cujas bases são as divisões de classes de seres: em sua juventude, certamente foi a vagabunda, a vadia, a louca; hoje em dia é apenas a velha moribunda, esperando o próximo osso e o próximo saco que salvará mais um dia de uma vida à deriva.

Perceberam, então, tomados por um misto de revolta e tristeza, que os olhos azuis da senhora expressavam, na verdade, uma profunda fome. Mas não apenas de comida. Seus olhos, contidos por um corpo enjaulado na submissão e preso pelas pálpebras insensíveis, estavam famintos. Famintos de vida. Famintos de Sonhos. Famintos de possibilidades. Famintos de uma vida que, sem poder fazer nada, foi-lhe tirada, escorreu por suas mãos e hoje, no fio da navalha, se resume a ossos e sacos.

Enquanto isto, regozijam-se a minoria de porcos imundos em salas suntuosas, preenchidos até o esôfago do mais nobre e novo quitute europeu, fazendo a festa, como parasitas desprezíveis, com o sangue de milhões de senhoras, jovens, trabalhadores, sugados até os ossos, pelos porcos capitalistas, banqueiros, burocratas e toda espécie de vermes que se intutulam “autoridades” responsáveis, nesta sociedade miserável.

Afinal, em último caso, se depender dos capitalistas, será este o resumo de todos os trabalhadores:
Ossos e sacolas. Senão os ossos de galinha, em sacolas, pra comer, que sejam os ossos de trabalhadores e do povo pobre, em sacolas, quando morrerem.