sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Viver na Periferia é uma treta!


 Viver na periferia é treta.

Hoje em dia é comum a hipocrisia alastrada.
Afinal, aquilo que o sistema mais produz e que, invariavelmente, põe em questão a sua própria existência, quando não pode ser mais negado, deve ser integrado.
É assim com o capitalismo. E não há nada que ele mais produza que a pobreza, as periferias, os rincões segregados e os indivíduos expropriados, sugados, atomizados, isolados, desprovidos de si mesmos.
Houve um tempo em que ser periférico, ou seja, trabalhador, morador dos indesejáveis, porém necessários, bairros de escravos assalariados, era um motivo de humilhação aberta, de sorrisos amarelados, de desqualificação moral e profissional. Falava-se nos corredores, agia-se nas salas de RH, erguiam-se barreiras sem pudores. O CEP e sobrenome limitavam abertamente.
Isso mudou. Uma das características marcantes da sociedade da troca de valores (ou dos valores de troca) é sua elasticidade. Até arrebentar, o elástico social, a cola social hipócrita do capitalismo ainda terá de ser confrontada por uma tensão sem trégua, nem precedentes. Não é o caso, atualmente.
Hoje, as fronteiras do consumo abarcaram a periferia. O CEP e sobrenome impedem promoções, contratações, acessos a mestrados, universidades, oportunidades, de forma maquiada, geralmente detrás de alguma razão muda.
As classes médias e os filhos da burguesia se apropriam, consomem as gírias, vestimentas, trejeitos, produção cultural da periferia e geram seus legítimos híbridos sociais.
Nada disso é novo. Ao longo da história destes últimos séculos, a validação social da cultura do peão e sua mercantilização tem sido a regra. Blues, rock, rap, funk, jazz...
A escala e os resultados, no entanto, distoam.
"Favela no topo; a favela venceu; pretos no topo; progresso pra firma", são os jargões da moda há bons anos.
A peneira tem seus grãos. Estes, exasperados com seu aparente brilhantismo, atuam, con$cientes ou não, engrossando o discurso: "queremos representatividade, nosso lugar de fala, basta acreditar".
A periferia e a consciência dos peões nos guettos maquiados são inundados de desejos de grandiosidade, posses, ostentação, destaque moral e financeiro.
Todas variações do mesmo discurso da ilusão, a velha mentira liberal da Meritocracia.
Drones cortam os céus acima de morros com casas empilhadas entrecortadas por becos e vielas estreitas. Edições perspicazes tratam de captar o belo pôr do sol da aglomeração humana.
A favela é transformada em patrimônio nacional, "diferencial comparativo" do turismo, atrativo para fotos, tours, caminhadas e, a depender do bom contato, de dia ou de noite, como boa fonte dos tão consumidos aditivos morais que ocupam papel nada desprezível na cartela do consumo pequenoburguês.
É claro que o esgoto a céu aberto não aparece nos spots publicitários.
É sempre uma bela tomada de uma serra de Mata Atlântica, praia do Rio de Janeiro, quando não de crianças correndo em ruas de terra, senhorinhas caminhando sorridentes, trabalhadores precarizados alegres, fazendo alguma entrega ou serviço enquanto acenam para a câmera.
O velho mito do "brasileiro cordial" elevado a monumento cultural para o conforto do cliente.
As tomadas agem em tempo futuro. O tempo do desejo. O desejo que as classes médias tem de expiar um remorso social herdado. De sair de suas estruturas regradas e sentirem um pouco daquela realidade que, ainda que dura, não deve ser tão amarga afinal.
Não será difícil para a emissora encontrar algum abobalhado que, com trejeitos embrutecidos ou simpatia injustificada, fale sobre como na periferia não existem "só coisas ruins", como é um lugar de "gente boa, apenas esperando uma oportunidade", "de cultura, arte e criatividade", ou seja, um ponto turístico desejável - e até invejável - para o cartel de viagens e experiências dos privilegiados.
Gringos, de dentro e fora do país (porque se existe uma Jaboticaba brasileira é esta figura do estrangeiro em sua própria terra natal, divorciado da realidade) afluirão feito ribeirão para as favelas, periferias, pancadões, mostrando em seus stories a consciência empreendedora, a criatividade econômica do povão, sua resiliência, essa palavra que age como tempero para a exploração.
Fotos, miçangas, milhares ou milhões de horas de conversas, vídeos do youtube e relatos serão erigidos para falar da doce hospitalidade dos pobres brasileiros, tão sofridos, mas tão gentis e batalhadores.
Assim se ergue o produto cultural, o nicho de consumo, perfeito para o Capital.
Toda a situação é muito sofrida, é claro, mas não deve acabar, sob pena de não suprir a demanda turística por "sentir a realidade" desse povo guerreiro.
A empatia, o sentir a dor do outro, não é nada além de um artigo a ser apropriado, um Produto a suprir uma necessidade, até que essa se faça presente novamente.
E sempre haverão pobres para suprir a ânsia por superioridade moral e chacoalhar a crise de identidade da playboyzada.
Ocorre que na periferia viver é uma treta.
Ninguém pára a tiazinha sorridente do spot para saber o que ela comeu no dia anterior.
Ninguém se importa se um bairro de periferia tem esgoto a céu aberto, ruas esburacadas, nenhum aparelho publico a não ser as incursões policiais, um posto de saúde superlotado ou uma escola caindo aos pedaços, tudo a 200 metros do bairro bacana da classe média, equipado com todas as comodidades da vida contemporânea.
Quando os poucos privilegiados, que chegam a obter algum lugar à mesa da patronal, eles mesmos se tornando patrões, falam sobre "a favela no topo" ou " a favela venceu", ajudando a criar e manter o consumo do produto Quebrada, estão, de certa forma, certos.
O topo é isso mesmo. E chegando lá, a favela venceu de que forma?
Pelo macarrão com salsicha e, quando há sorte, feijão, que comem milhões de brasileiros trabalhadores?
Pela violência policial, invasões domiciliares, execuções, que tornam ficções ridículas as garantias de "liberdade de expressão, de reunião, de pensamento, inviolabilidade do lar"?
Pelos trabalhos precários em aplicativos, pela informalidade, pelos idosos vendendo panos de prato no farol, sorvete nas ruas, muambas no centro?
No vagar cotidiano daqueles que ainda não desistiram de procurar emprego e se humilham pedindo para o motorista deixar entrar por trás no busão, pois não tem grana da passagem?
Na realidade de milhões se pobres se acotovelando, amontoados em barracos ou casas precárias?
No individualismo e na competição brutalizada, fonte de mortes por banalidades todos os dias?
Na desorganização e despolitização ena inexistência de um norte coletivo devido a luta feroz para poder sobreviver até o próximo mês?
No fundamentalismo evangélico alienante e intolerante, que transforma jovens em cordeiros fiéis da própria exploração?
Na tirania da lei do mais forte, presente e dominante em todas as quebradas?
Não.... Esta realidade não faz parte das fronteiras do consumo. Estes bastidores inconvenientes são colocados de lado ou, quando muito, mencionados com alguma frase condescendente sobre superação.
Esta amarga realidade é, inclusive, exaltada como a fonte geradora dos "gênios periféricos".
De fato, quando chegam as figuras da "elite periférica", autoexaltadas como gênios únicos, ao "topo", aos mesaninos da "high society", estão, em certo sentido, certos. O topo é assim mesmo, o terreno da hipocrisia.
É claro, nem tão alto, pois os andares superiores seguem para os herdeiros das dinastias aristocráticas, escravocratas, que lhes proscrevem o acesso às maravilhas da vida burguesa bilionária.
E sabe o mais surreal nisso tudo? Uma vez ali, a revolta que os toma não é a limitação do acesso de 9 em cada 10 pretos, pobres e perifericos, a esse topo. Não é a trilha de crânios pisoteados pavimentando uma vida confortável para poucos.
É, justamente, a de não poderem, eles mesmos, os gênios, acessar tais espaços.
Brigarão raivosamente, arrastando a simpatia de parte dos explorados, por mais espaço, pela integração na sociedade de exploração, pelo seu direito de obter a auto-estima de ser um grande capitalista.
Seus ídolos não são os revolucionarios, mas os que jogam melhor o jogo. Seus sonhos não são coletivos, mas orbitam seus umbigos inflados. Seu horizonte é apenas seu, os outros "que lutem".
Não, a periferia não é o lar das virtudes humanas. E eu tô farto dessa cantiga burguesa.
Enquanto tento me concentrar para escrever este texto, a vizinha liga o Malafaia, as nove e meia da manhã, no máximo. Entre gritos de louvores em línguas, num legítimo surto psicótico, manda seus filhos, crianças de menos de 6 anos, à merda enquanto lavam o quintal cheio de bosta dos cachorros. A bosta que eles ainda não comeram, por falta de ração. Abrupta, berra pelo mais velho - "filho da puta" - e chuta o cachorro com o focinho enfiado nas fezes. Em seguida começa a cantoria insana novamente.
O marido, bêbado ou drogado, chega à porta de casa e manda o mais velho escorraçado chamar "a puta da sua mãe" e trazer a chave. Entra. Começam a se xingar - "puta, nóia" - e ouço batidas na parede, choros, berros. A vizinhança calada. Os passarinhos capturados pelo drogado cantam, como querendo fugir desse inferno.
O bêbado sai tropeçando pro BBB da quebrada: a boca, o bar ou o bico. Deixa a merda do portão aberto. Os cachorros esfomeados sobem minha escada e começam a fuçar meu portão, tentando pegar a ração dos gatos, logo à frente.
Mais acima, um moleque, tatuado, óculos lupa, moto CG, bate a porta e, aos berros, expulsa uma menina com uma criança no colo. Outra criança sai correndo de dentro da casa, com uma faca na mão. O moleque xinga a mulher, que berra impropérios no mesmo tom. Uma mulher desce correndo e chamando o nome do cara. É sua mãe. Mulher e mãe tem o mesmo destino na boca do néscio: "Vão tomar no cú, vão cuidar da vida de vocês, leva essa criança pra sua casa, sua puta".
Topo? Eu quero é dinamitar esse prédio, porra.
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Este é o primeiro texto do projeto chamado "Prosas proscritas".