domingo, 9 de janeiro de 2022

A montanha da luta de classes


Durante a maior parte de minha ainda breve vida política consciente vivi numa época rara. 

Na verdade, foi durante sua duração que me formei politicamente, psicologicamente e, é claro, moralmente. 


Essa época, ainda que relativamente frequente nos países centrais de nosso planeta capitalista, nunca foi muito familiar nas terras de onde escrevo. 


Quando Marx escreve sobre os "ciclos industriais", desenrolando-se em fases de prosperiadade seguidas de crises de superprodução causando miséria, já previstos a uma duração, variável, é claro, de cerca de dez anos, ele tratava da única nação em que as relações capitalistas de produção haviam dominado todas as esferas da produção material de forma plena: A Inglaterra. 


No Brasil, ao longo dos últimos, talvez, dois séculos de sua história imperial, republicana e ditatorial, vivenciou algumas destas oscilações cíclicas, com apenas uma diferença fundamental: em poucas, nas fases de prosperidade material (vulgo, acumulação acelerada de capital), houve a linha política de permitir a concessão de uma parte maior do "bolo", em forma de concessões, por menores que fossem, como forma de apaziguar preventivamente a fúria dos explorados. 


Aqui, a marca feita a fogo pelo Capitalismo periférico se demonstra na superexploração desenfreada dos trabalhadores, numa guerra civil maquiada imposta aos pobres pelo Estado dos patrões e pelo estrutural pagamento de salários muito abaixo do valor da força de trabalho (eis aí um salário médio de 1500 reais, enquanto um mínimo para a sobrevivência, calculado pelo DIEESE, deveria ser de 5000 reais).


Minha formação se deu numa dessas épocas em que, apesar de não alterar estas características fundamentais do capitalismo brasileiro, fizeram-se pequenas concessões, consideradas, pela realidade miserável e secular de espoliação, como enormes contribuições à vida e esperança dos pobres e trabalhadores. 


Os anos do PT no poder trouxeram, na esteira do enorme impulso sustentado pelo consumo de comodities chinês (essas coisas como soja, minérios e carne, o carro chefe so papel brasileiro nas cadeias de produção mundial), medidas cujo objetivo eram, além de sustentar o partido no poder, cumprir um papel apaziguador, conduzir as esperanças, angústias e desejos "através dos trilhos e margens da democracia". Buguesa, é claro.


As pessoas desejam. Isto é um fato. E àqueles que mais falta, o desejo vem sob as mais variadas formas e intensidades. 

A classe dominante de nossos tempos, os patrões, sabem disso. 

Efetivamente, a realização de sua razão de viver, acumular mais capital, depende da capacidade de explorar, criar e conduzir estes desejos. Só existe lucro onde há desejo e compra.


O passo de todos os endinheirados, em todos momentos em que a classe oprimida desperta e entende os séculos de sua exploração e sua força potencial ao se unir, foi buscar conduzir esperanças pelos trilhos, domesticados e controlados, do seu regime político, suas instituições, suas leis e seus prazos qur nunca chegam.


Em troca das bolsas familia, do acesso à universidade, de algum incremento no salário mínimo (sempre muito abaixo do minimamente digno), o PT conseguiu imobilizar movimentos e conduzir expectativas para o Estado: tudo dependia de saber esperar o "talento politico" de tal ou qual parlamentar trazer "melhorias a conta gotas".


É exaustiva a discussão sobre o quanto estas concessões eram e poderiam ser efêmeras e provisórias. De 2015 para cá, foram todas varridas do mapa.


A história da luta de classes demonstra que todas melhorias minimamente sérias e duradouras só podem vir como subproduto de uma luta revolucionária, ou seja, uma mudança na correlação de forças entre os peões e os patrões. 


Os níveis da Jornada de trabalho, salários, condições habitacionais, direitos sociais, todos foram conquistados por uma luta contra a exploração do trabalho, ou seja, questionando as RELAÇÕES CAPITALISTAS de produção. 


Evidentemente, em cada um destes combates, que fazem parte de uma guerra civil permanente entre trabalhadores e exploradores, pressupõem-se certo grau de consciência e organização de classe pelos  oprimidos. 


Ainda que este tema nao tenha sido sanado entre as organizações que se consideram "revolucionárias", é evidente que um profundo retrocesso nestes dois pressupostos se impôs, desde esta absorção da luta pela conciliação do PT, dando um mergulho com o impeachment de Dilma e a instauração de um governo tutelado pelos militares, com Bolsonaro como testa de ferro.


Em meio a este cenário desolador, cá me encontro, diante de uma confusão generalizada e a domesticação pelas leis e propriedade burguesas, não apenas por parte da consciência média do trabalhador comum, mas dos grupos da esquerda socialista. 


Afundados no atoleiro das eleições, seguem conduzindo as inúmeras e graves demandas dos explorados, no máximo, para um projeto de lei, uma petição parlamentar ou uma greve engessada por uma prática sindicalista acovardada frente aos tribunais.


Inusitado que frente ao chamado de sua razão de ser, com a proliferação descontrolada da fome, do desemprego, da miséria moral, do obscurantismo, nossos socialistas não compareçam ao encontro da história. 


Sem contribuir com nenhum exemplo em termos de propaganda, de ação direta, de lutas de resistência e defensivas capazes de ensinar e conduzir a organização novas gerações de peões, contra todos estes ataques e a piora abismal da vida, nossos socialistas se converteram no profissional mais tragicômico do espetáculo burguês: o de ouvidoria da exploração capitalista. 


Não há nenhuma referência séria nas ideias ou figuras socialistas e revolucionárias pelos trabalhadores. 

Tornam-se, assim, mais retroalimentados em suas seitas, com vocabulários próprios e esterilidade comum, tudo flutuando em meio ao mar de pequenas disputas de pequenos poderes e pequenos privilégios de pequenas figuras.


Perdida em ações orientadas por interesses de marketing digital, patinando na lacração de classe média e, fundamentalmente, orientada como plataforma de sustentação de carreiras de alpinistas sociais, exploradores egoístas de nichos sociais e parlamentares e sindicalistas acomodados, nossa esquerda socialista se liberaliza à velocidade da luz nesta crise. 

Torna-se a oposição esperada... e inofensiva.


Seu próximo passo é imiscuir-se nos negócios da democracia liberal e, vendendo a mentira adocicada do passado idealizado, tornar-se fiadora da mais nova fórmula de salvação da nação brasileira, essa máquina de matar preto e sugar peão: 

A redentora candidatura de Lula e.... Alckmin!


Por razões de dignidade, recuso-me a listar o inventário de maldades desse senhor, o massacrador do Pinheirinho. 

Sua função óbvia é a de tutelar os gerentes Ptistas e Lula para que "andem na linha" e abandonem qualquer mínima intenção de voltar a fazer concessões ou retroceder em ataques, como a reforma trabalhista.


Basta enunciar essa como a realidade mais provável a retornar ao poder para esclarecer a visão do tamanho de nossa crise.


A frente há uma montanha,  com cada escarpa preenchida de alienação, atraso, carestia de vida, fragmentação, divisão e precarização inéditos das relações de trabalho, jornadas longas e intensas, filas de osso, porções territoriais tomadas pelo crime e igrejas associados ao Estado, necessidades de retomada de sindicatos e criação de outros, em suma,  uma montanha a se escalar para abrir os olhos e levantar as mãos dos peões. 


Entretanto, nossos socialistas amarelados - e mesmo algumas variáveis mais avermelhadas - parecem resignar-se a um papel oscilante, ora como ouvidor, ora como candidato a "gestor humano" de um capitalismo que, por nada, por lucro, certamente levou milhões de trabalhadores brasileiros à morte numa epidemia.


Essa realidade só é possível graças a uma doença crônica da qual sofre nossa esquerda, outrora socialista, cada vez mais liberal: sua composição e infecção pelos interesses e fome arrivista das camadas privilegiadas da classe média e da pequena burguesia, sem nenhum interesse ou capacidade séria de romper com a vida no capitalismo.


Tive dificuldade de perceber os limites dessa esquerda. 

Nos tempos de minha formação, os ritmos eram lentos. 


Sob a proteção das boas condições de vida e relativa paz social dos governos petistas, era possível até ao mais pelego de hoje sustentar um discurso vermelho e radical. Não se fazia, como hoje, balanço de nada ou autocrítica de qualquer coisa. Todas direções se atribuíam o papel de guardiões  das chaves do socialismo.


Hoje, enfeitiçados pelo perfume do prestígio social, figuras como essas, jogam num baú seu passado, já tímido, de críticas e sustentam o desvio da justa indignação popular, das trilhas revolucionárias para as trilhas da "cidadania", assistencialismo e abafamento da consciência de classe.


Que lástima escalar essa montanha quase descalço!


Mas que dádiva poder viver tempos em que as palavras são testadas a ponto de fazer rapidamente cair as máscaras dos pretensos "amigos" do povo.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Cacofonia

 26 de dezembro. 1:30 da manhã.


As luzes da goma já se apagaram. A coroa foi pra cama, a véia pro seu quarto. 

Restam a mim, o pigas e o Cão sentados no escuro da sala. Na TV, meti uma série.

 

Engano pensar que conseguiria me concentrar. 


Lá fora, estrondos de bombas de tamanhos sortidos se engalfinham com o rugido trepidado das motos no grau. 

Um bagulho de tremer parede.


Uma cacofonia eufórica jorrando por quase uma hora na quebrada. 

Dá pra sentir as aceleradas, os batuques, as músicas, todo aquele rugido se chocando entre si, entre ruas, entre as curvas e esquinas apertadas. 


Aos poucos, a cacofonia muda de forma, se condensa e vai ganhando estabilidade, ora num samba na esquina de cima, ora num funk lá no pé do morro... 

Dá até pra ouvir o tecnobrega na Rua do Bailão. Nesse ritmo, a coisa vai até o sol aparecer. 


Pelas ruas, as brigas, xingos, motos e barcas cruzam-se (des)harmonicamente sem parar. 


Acendo o pigas e começo a ouvir o ronco da véia. Conseguiu pegar no sono. Trampou pra porra hoje. Tava uma delícia o rango, aliás. Amanha vou pedir una marmitinha.

Saio pela porta e me debruço pra desbaratinar por uns minutos na sacada lendo as entranhas de asfalto.


Da vista privilegiada, posso ver quase toda a quebrada. Uma parte enorme, de qualquer forma. Um milhão de pessoas enfurnadas neste mosaico de telhados e muros colados? Um pouco mais?


Todo fim do ano é esse movimento, uma espécie de antesala da Festa de Ano Novo, uma verdadeira descarga de energia periférica e popular, após um ano do cão. 

Muitos sofreram e se perderam. E muitos fizeram calados. Natural que em algum momento se façam ouvir.


Não há dúvidas, no entanto, que esses peões tem voz. A cacofonia da periferia é a prova inequívoca disso. 


O dramático é que sejam dispersas, sem sincronia, sem harmonia, numa miscelânea de ruídos potentes, presentes, legítimos, mas, ainda assim, ruídos e, portanto, desorganizados, fáceis de se consumir rapidamente, engolidos num silêncio ou noutros barulhos afins...


Drama mesmo vai ser quando a gente (re)descobrir a potência de falar junto, a beleza e força de cantar em harmonia, sincronizados na voz e no braço.


Apago o pigas e volto pra série. 

Antes de fechar a porta outro nexo se forma em meio aos ruídos. Um louvor começa a se estabelecer na casa da Dulce. 


No andar debaixo do predinho, vejo a janela com cortina vermelha ascender. Ixe... É o Cléber.


Um puta estrondo engole o culto. Uma sinfonia....

Caralho, o Cléber é foda kkkkk


Em pleno natal, o cara calou o louvor com a Internacional!!!


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A lógica das coisas

 



TRIM TRIM TRIM!


Dei um pulo na cadeira. 
Só podia ser aquilo. 

Todas as notificações estão desativadas. Sabe como é, pequenos gestos em benefício da saúde mental. 
Deixei apenas as notificações do E-mail já que precisava de alguma resposta sobre a entrega. 

Aperto o botão lateral, deslizo o dedo formando o desenho de bloqueio sob o sulco esculpido pelo hábito na película judiada e lá está a notificação dos Correios. 

Exatos 70 reais, só de frete, para entregar 4 livros. 
Na "resposta à manifestação", a entidade pretensamente humana, indistinguível de um robô, comunica que meus pacotes estão já há 6 dias esperando a retirada e que a data limite é amanhã. 

Inútil argumentar. Esta já é a terceira reclamação realizada, todas respondidas me enrolando e mandando ir buscar algo pelo que já paguei a entrega.

Reúno a moral carcomida pelos meandros burocráticos e vou até a agência. 
Uma porta daquelas de bar, sanfonada e de aço, dá entrada a uma aglomeração de inconformados, atendidos por dois funcionários, todos displicentemente sem máscara, resmungando, cada um na posição que lhes cabe. 

Já se vão 20 minutos de espera e ainda me restam 30 "usuários" para terminar mais este calvário citadino. 

Pelo que posso apurar, é sempre a mesma história. Os Correios não entregam se casa tiver "restrição de envio". "Área de Risco" eles dizem.

A cada nova senha, uma cara feia e resmungos. 
O tom começa a ficar mais alto, as palavras mais ásperas, como se o antagonismo ganhasse pouco a pouco forma no ar. 

Na sala apinhada, um mais exaltado começa a gesticular, bradando sua máscara cirúrgica numa mão e o  RG noutra:
"Toda vez a mesma merda! Vocês falam que vão na nossa casa e não tem ninguém. Porra, eu cuido de um filho cadeirante, quase não saio, vocês nao foram porra nenhuma". 

O pavio é aceso. Diante dos olhos caídos de atendentes estafados do espetáculo que já consideram ter visto vezes demais, a indignação toma outras bocas: "Eles são tudo um bando de folgado, é tudo mentira não levam porque não querem".

O funcionário, como que calejado, assume a defesa da empresa e informa em tom igualmente ríspido indignado: "Senhor, eu mesmo moro 'área de risco'. Vou fazer o que? Não é tudo sobre você. Infelizmente, na sua região existe muito roubo de carga e essas coisas, tem que se habituar...". 

Tudo ali, na minha cara. Dois peões, entreolhando-se com ódio, cada um munido de suas razões, acotovelando suas angústias na fila da miséria de vida amarrada por protocolos e regras burocráticas na maior cidade da América Latina. 
Um grande centro onde peões, em tempos em que bilionários enviam conversíveis para Marte, não conseguem receber um pacote.

Sem tardar, o convidado de honra deste encontro tragicômico se apresenta: "Tem que privatizar essa porra! Vai ver se o mercado livre faz isso aí?!!". 

Os números correm tão lentamente quanto crescem e se acunulam em mim e noutros aquele calor, aquela boca seca, aqueles repetidos "tsc" de insatisfacao e as rosnadas de impaciência. 

Você já viu um ser humano rosnando? É um fenômeno muito particular. Uma expressão de amargor e raiva como que escorrendo da etiqueta social, pouco a pouco, ficando cada vez mais alto e evidente, mesclando-se com as progressivamente enrugadas marcas no rosto de quem desejaria jogar tudo pro espaço. 
O rosnado humano é um grito amordaçado que se dá contra a hipocrisia e desperdício de energia social.

Enfim, chega minha vez. Número 567. Passo veloz por entre os perdigotos esvoaçantes lançados pelas pessoas acumuladas na entrada e chego com meu código explicando o ocorrido. 

Imediatamente, o funcionário se interpõe como uma muralha: "Papel da senha, por favor". Tão rapido quanto o arregalar dos olhos foi o apalpar de meus bolsos com a mão. 
Em vão: "Pouts, cara... Deve ter caído no chão... Mas o problema é es-"
"Se não tem o papel da senha, tenho de chamar o próximo", diz o autômato tocando o painel e chamando a próxima senha. 

Por um instante me sinto flutuar. 

Visualizo toda a agência ao meu redor girando e girando até tomar a forma de uma vertigem que, de súbito, se transforma numa outra sala, destroçada, com montanhas de caixas rasgadas e envelopes salpicados pelo chão. 

Ao redor uma orgia de indignados arregaçam os bancos, depredam vidraças, urinam nos caixas. 
Alguns, mais animados, sobem triunfantes nos carros de entrega e pulam freneticamente em sua lataria; outros, num ato de criatividade destrutiva, pixam R no lugar do X de SEDE(R)X, lançam bolos de cartas rasgadas nos funcionários que correm semidespidos de olhos arregalados; os gritos, o ódio, a raiva explodem num frenesi sem freio. 

Repentinamente me vem ao ouvido:
"Moço, tava aqui no chão da entrada", diz um rapaz de olhos caídos, postura cansada, uniforme do supermercado, entregando minha senha em mãos. 

Sorrio a ele e entrego, já sem sorriso, a senha ao caixa, explicando o problema dos pacotes e reclamando que nunca fazem a entrega. A resposta é padrão: "Você mora em área de risco". 

Contraponho, como um Quixote da sensatez, talvez pensando que ali a Razão tenha alguna soberania, que o carteiro passa toda semana e que inclusive já recebi alguns livros. Tão mais injusto me cobrarem três vezes, pelo frete, pela passagem de ônibus e pelo tempo perdido. 

Ledo engano.... Neste tipo de repartição, não há espaço para idealismos tão pueris quanto os da Lógica. 

O caixa, soçobrando minhas esperanças, abaixa o óculos até quase a ponta do nariz e me responde em tom baixo, quase provocativo, em meio à balbúrdia que se acumula nos caixas ao lado:
"Eu sei que é difícil pra quem não trabalha nos Correios entender...Mas uma coisa são os carteiros de Rua, outra são as encomendas. Nas áreas de risco, não entregamos mesmo."

"E o Frete de cada um dos livros que paguei? É injusto eu sequer receber.", replico, ingênuo, ainda abraçado à Lógica e algum senso de justiça.

"O frete não é só entregar, né? É TODO um processo... Veja, a gente as vezes não sabe, mas tem muito roubo de carga nestes bairros. E nâo é só nesse seu CEP não viu...? É na Vila Olimpia, Jardins, Butantã..." replica, como que tentando explicar a imparcialidade social da suposta regra. 

Respondo, já sem paciência: "Lá onde moro não tem isso não cara... Se fosse assim, outras empresas não entregavam compras, o carteiro não iria... Moro há 18 anos e nunca vi isso lá. Isso é preconceito!"

Esbugalhando os olhos e fazendo erguer um sorriso de soslaio, o caixa lança uma tréplica, meio que demarcando o fim da história: "Ah, tem sim! Você é que não sabe."

É engraçado o efeito psicológico que uma posição burocrática proporciona a um indivíduo. 
O sujeito nunca me viu na vida, mas julga saber melhor quais são meus direitos e a realidade de onde vivo, atribuído da onisciência proporcionada por um código numérico e uma etiqueta no site de sua empresa a um palmo de seu nariz. 

Até pensei em mencionar o fato de que no cruzamento da rua onde vivo ficam duas biqueiras, cheias de vapores e gerentes, visitada 24 horas por dia por clientes e, claro, a fiscalização informal do Estado em forma de propina. 

Achei que se falasse isso obteria o triunfo dessa presença já maltrapilha na conversa - a Lógica -, pois não existe nenhum traficante que vá querer atrair problemas pro seu comércio, proporcionados por roubos de carga na mesma rua. Mas eu aprendo. Sei decretar o fim de propósito quando o vejo em uma conversa.

Deixo a bola rolar. 
Um senhor de idade vem e coloca o RG na boca do Guichê, falando que seu número havia passado e não tinha sido chamado. O Caixa muda sua expressão gelatinosa para uma feição enrugada de nervosismo: 
"Chamamos sim! O senhor é que não prestou atenção. Espera aí que já atendo".

Antes mesmo que o velho, a essa altura com os olhos arregalados, pudesse responder, nosso atendente olha para o lado e comenta com seu colega: "O problema é isso... todo mundo quer ter razão, direitos, mas nenhum dever..".

Tento replicar com um "Po cara, ele é um senhor de ida-" e vejo a última sílaba mergulhar no vazio que se abre no espaço  que o caixa ocupava na cadeira. 
Com seu sorriso de soslaio, o sacripanta pega a lista que lhe dei e sai para uma sala ao lado, parecida com um depósito.

Lá, entre o burburinho, consigo ouvir alguns comentários com um terceiro interlocutor.

"- Tá foda hoje, ein? Puta que pariu, cheio de Véio e desse 'povinho'.
- Ah, chega essa hora na segunda e é sempre assim...
- Que que esse véio queria?
- Ah, tava babando na cadeira e perdeu a senha. Deve estar querendo pegar uma muamba qualquer.
- E esse cara ai conversando tanto?
- Ah, outro ignorante de merda... Mora na porra da favela e quer pacotinho na porta de casa. Livro ainda... Deve estar comprando essas apostilas de supletivo ou 50 tons de cinza pra alguma velha na casa dele..." Caem os dois em gargalhada,  emanando estranhamente do depósito para a sala tomada de expressões carrancudas.

Por alguns instantes o "ignorante de merda" fica repetindo em minha cabeça. A lógica, essa peralta ingênua, reivindica mais uma vez seu lugar. 

De que adiantaria, no entanto, mencionar que os livros se tratam da compilação das matérias da Gazeta Renana, de Marx e Engels? Ou que também abarcam a fenomenologia do Espírito, de Hegel, além de Dawkins, Ursula K le Guin, Rosa, etc? 

Peço paciência a nossa peralta e espero o retorno dos pacotes. 
Afinal, que lógica há em tentar convencer outro peão, que pelo simples fato de ser concursado e sentar num caixa, é engolido pela ideologia patronal e se considera superior, sequer reconhecendo a discriminação de classe evidente e cristalizada na absurda determinação de uma região periférica como "Área de risco"?

Antes de voltar, na transição entre as salas, o caixa vira pro interlocutor e diz "E aquele PDV lá, cara? Olha, se virar, eu to saindo fora.... Quero é trabalhar pra mim mesmo!", respondido por um efusivo "Aí é vida!", do terceiro.

De volta, me entrega 3 pacotes e informa que terei de retornar depois para pegar o quarto, que ainda não chegou. O quinto, segundo me informa, ficou 8 dias na agência e hoje, antes do fim da data limite, foi devolvido ao remetente.

"PUTA QUE PARIU", talvez eu tenha dito em voz alta. Não importa. Mal pego os livros e nosso caixa já chama a próxima senha, sem sequer olhar-me nos olhos ou balbuciar um gesto humano no fim da transação. 

Enquanto saio, o "Ignorante de merda" continua ressoando em minha cabeça. 
No entanto, pensando bem, me vem um estalo de epifania. 

Talvez esse imbecil tenha me dado uma boa ideia. 
Enfim, encontrei um bom uso praquela bosta molhada que os gatos, ratos, cães e sabe-se lá o que mais distribuem regularmente na porra da minha escada. 

Bato um fio pro Cléber. Ele estava fazendo uns corres de prestação de serviço de contagem de patrimônio. Acho que é MEI. Peço seu endereço e dados pra enviar pro antigo endereço do Juca, que não mora lá  nem vai buscar nada. Cadastro meu e-mail alternativo pra rastrear.

Encho um pacote com variedades fétidas sortidas de cores, formatos, texturas e origens diferentes. Furo minuciosamente com agulhas toda a extensão do plástico e embrulho no papelão. Na capa, a designação "Aditivo agrícola natural" pra não dar pala. Encaminho pelos correios.

Já faz 4 dias.

TRIM TRIM TRIM

Recebo uma notificação: "Favor retirar sua entrega no endereço solicitado em até 4 dias úteis. Motivo: destinatário ausente/área de risco".

Ainda estou me decidindo se daqui a 4 dias volto lá, só pra ver a cara de nossos colegas ou se deixo a merda refazer todo seu percurso lógico.


quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A fresta

 



Eu nunca fui o melhor em alguma coisa

Deitei a cabeça no travesseiro e me indaguei incisivo. Digo eu porque, afinal, acredito que o que me vem à cabeça, ainda mais a essas horas da noite, só pode ter esta origem.

E é daí que se inicia o trajeto da insônia.

Eu achava bobagem aquelas cenas clichês de filmes e séries, em que o sujeito se debate na cama absorvido pelas sinuosas curvas de pensamento caótico, sempre no momento mais inoportuno do sono, revirando fatos do passado, ideias do futuro e angústias do presente. Eu também nunca dei muita bola pra esse papo de saúde mental. Afinal, somos criados para lidar com o externo.

A rigor, somos criados para sermos um apêndice da vida exterior, como ferramentas úteis que devem se segurar como puderem a um fio de saúde física e todo o resto se trata com o bom e velho “tem de aguentar”.

É curioso como, tantas vezes, me deparei com situações absolutamente elucidativas sobre o que é uma crise do pânico, um transtorno de ansiedade, gente borderline e toda essa sopa de letras sortidas que o capitalismo disponibilizou para nossa geração. Uma riqueza de transtornos, um mostruário de monstruosidades, toda essa parafernália que acomete os adoecidos são o subproduto histórico-social de uma vida expropriada, sugada de sentido, para nove décimos dos pobres diabos como eu.

Ainda assim, tudo me parecia apenas algo mais do que uma frouxidão moral, uma fraqueza de gente sem sorte. Isso, até eu ter a minha primeira crise de pânico.

Voltemos à insônia, no entanto.

Percorri escrupulosamente os cantos da minha vida em busca de confirmação ou refutação de afirmação tão taxativa.

Lembro bem da adolescência. Nunca tive o cabelo mais bonito. Ainda que tivesse um sorriso cativante e um porte um pouco acima da média, não podia competir com o cartel de oferecimentos da turma dos “populares”. Todas as pequenas características físicas e morais que pudessem me conferir algum destaque em uma época tão crítica e em que impera tão fortemente a crueldade, como a adolescência, eram contrabalanceadas pelo sobrenome pomposo, pela total 90 da Nike, os rolezinhos semanais no shopping e a noção de Status que a Bárbara poderia ter indo ao cinema com o filho do dono da papelaria.

O jovem da periferia ou, como alguns falavam em tom condescendente, “classe média baixa”, era algo entre o exótico e aquilo que deve ser evitado. Desnecessário dizer que, em se tratando de relações, esta não foi a melhor época para mim.

Nunca tirei as melhores notas, é verdade. História, Geografia, Sociologia, Português e Redação me encantavam, apesar de, nesta busca por identidade, não sugarem decisivamente minhas iniciativas e vontades.


Estava em algum lugar entre os nerds, aos quais atribuo, hoje, o mérito de terem visto com clareza e terem embarcado nos assuntos de seu interesse e os largados, aqueles que por seus motivos não tinham os meios nem se encantavam com nada do que era discutido ali. De conjunto, já é um privilégio ter a possibilidade dessa escolha num país assolado pelo semi-analfabetismo e pelas escolas caindo aos pedaços.

Isso me faz lembrar o futsal. Jogava na pista de taco e de cimento do salão do clube perto de casa. Não tinha nenhum campinho muito próximo e também me dava muita preguiça pensar em correr aquele campo inteiro enorme. Eu gostava de emoções concentradas, preâmbulos rápidos e jogadas ligeiras.


Mesmo ali, nunca fui o destaque. Havia dias em que chutava redondo, acertando até umas boas rebatidas de três-dedos, roubando uma bola na ala esquerda e fazendo um bom cruzamento, chegando a arrancar algum elogio do treinador. Em outros, era como se algo se apossasse de mim de forma que, a cada dificuldade específica, num dia específico, crescesse uma voz no fundo da minha mente, uma voz de uma sombra que escurecia o ambiente, me tirava as forças e sugava minhas possibilidades de fazer bem algo.
Lembro da vez em que fiquei quase 5 minutos tentando acertar um pênalti na fila de cobrança. A cada chutão pro espaço, no meio do gol ou na não do goleiro, um uivo da molecada sugava algo em mim e injetava o veneno que fazia crescer a sombra. A sombra da incerteza e da insegurança, algo muito familiar nos anos vindouros.

Aprendi então que, não sendo capaz de vencer, para ao menos olhar a luminosidade de algum êxito no horizonte, precisaria agir de alguma forma.
Esta foi a época em que era moda zuar a aparência alheia na escola. O nome e o cabelo encaracolado/crespo, é claro, foram alvos preferenciais.

Esmagado pela estrutura social dominante na escola de classe média alta, na qual ocupava o papel de “elemento de atenção”, a busca por identidade e a sombra da incerteza, percebi a fonte de onde poderia erguer minha vontade.

Algo começou a mudar quando, espremido pela sombra e sentado em algum canto escuro e seco, pela primeira vez, percebi uma fresta estranhamente luminosa e estridente, cujo calor dissipava a frieza da incerteza, se abrir, me mostrando uma fonte inesgotável de energia. A raiva foi minha companheira fiel — e segue sendo — durante todos esses anos.

Essa foi, então, minha força motriz. Não me lembro em quantas oportunidades praticamente entrei com bola, zagueiro, goleiro e, às vezes, até juiz, no gol adversário. A vontade passou a ser o mote e a raiva o combustível.

Comecei a concluir que, como forma de ser respeitado, devia pagar o fogo com fogo maior.

Aquela fresta no canto do quarto se tornava cada vez maior e, agora, me permitia até ver um pouco mais daquele espaço, vazio, é verdade, mas que um dia eu poderia mobiliar e decorar, tornando-o um lar que eu gostasse. Não precisaria me preocupar com o calor. Enquanto estivesse aberta aquela fresta, eu veria ao menos parte da minha sala, ficaria aquecido e estaria seguro.
Meti um soco na cara de um folgado; passei o rodo naquele que me chamou de cabeça de Bombril; angariei uma reputação para chamar de minha.


De uma forma estranha, o destaque me encontrou. Eu era o terror da escola. O cara que tirava boas — embora não excelentes — notas, que tocava o terror nas aulas, que não aceitava desaforo e que se defendia e a suas opiniões feito fera. Naqueles dias, parecia que, sugando a commodittie daquela fresta, eu poderia chegar a qualquer lugar.

É fácil perceber que, também, nunca fui o melhor em fazer escolhas.

O quarto estava cada vez mais quente, ainda que, por seu tamanho, a fresta crescente não o iluminasse todo. De início não percebi a contradição. Tentei buscar algum escape que me permitisse modular essa diferença. Tentei as artes marciais.

No judô, era bom. Treinava e dava trabalho para os faixas pretas. No entanto, seja por uma demasiada lentidão dos combates ou na progressão de faixas, rapidamente me entediei quando dos primeiros anos e das muitas quedas tomadas. Fui para o Kung Fu. Lá, não consegui aprender muito, vide que, nestes tempos, a maioria dos estabelecimentos e picaretas que se chamam de mestres apenas aproveitavam um nicho de mercado da classe média com algum capital excedente para gastar para vender um produto que satisfizesse o consumo performático. Novamente, foi inevitável a frustração.

Tentei uma Banda. No início não sabia tocar nada e, sendo honesto, não era o melhor dos cantores. Entretanto, ter sido criado por pai e mãe trabalhadores apaixonados por música e tendo crescido em um ambiente musical, em conjunto com o calor bombeado pela fresta, encontrei aí um caminho possível. Iniciei o violão, compus alguns sons e tive 3 ou 4 bandas até o início da vida adulta. Novamente, por querelas pessoais e pela pressão de decidir o que fazer com o futuro, aquela sala parecia ficar cada vez mais escura, ainda que cada vez mais quente.

Findou-se a escola. Num clima sufocante e escuro, me via diante, novamente, da indecisão. Realizei — um outro eu — uma investigação parecida com a que faço hoje, com muito menos elementos, cicatrizes e experiências. O que vou fazer? Quem sou eu?  Há algo em que eu realmente seja bom?

 

Uma inconstância pulsante durante a vida de jovem adulto, um tipo de insatisfação perene, como algo que falta e não se sabe o que é. De educação física até ciências sociais, de física nuclear a biologia, demorei até chegar a uma definição do que fazer com o já restrito universo aberto pela possibilidade de uma Universidade.

Nela, igualmente, não fui o melhor em quase nada. Por um breve período, imaginei-me o melhor em determinadas matérias, em determinadas atividades, em determinadas lutas. Busquei incessantemente conduzir o calor das frestas pelos canos que moviam meu íntimo e, por certo período, encontrei um equilíbrio. Estava bem, ainda que, estranhamente, aquela sala parecesse ficar cada vez maior e menos iluminada, ao passo em que o calor se tornava mais e mais sufocante.

Na cama, meu corpo já sambava como um ovo na frigideira, de um lado pro outro, como se o incômodo psíquico não pudesse se conter e contagiasse o corpo.

Fechei os olhos novamente. Tentei vasculhar os cantos da sala, em busca de alguma lembrança que me trouxesse alguma confirmação. Percebi que não via nenhum vértice ou parede. O canto havia sumido, embora o calor fosse o mesmo. Olhei para o chão e imediatamente vi a fresta. Nunca a havia olhado diretamente, me contentando com a luz que ela projetava nas paredes e no canto que conhecia. Pensei que, com o tempo, inevitavelmente todos os lados da sala estariam claros, aquecidos e, assim, poderia começar a mobiliar minha morada, do jeito que gostasse, encontrando aquele objeto que me dissesse, só de ver, no que sou melhor. Olhei, no entanto, ao redor e percebi que, agora, eu estava no centro da sala. A fresta aberta, com um centro largo que ia se restringindo nas borda ao redor do círculo, formando rachaduras no chão, fervia com chamas se elevando de um líquido espesso e brilhante, como lava. Não sei como, mas em meio a esta lava, eu via figuras, de uma inspetora, do cara que me chamava de Bombril, de desafetos variados... Vi, de relance, uma foto, daquelas tiradas nas antigas Polaroids, flutuando por cima da massa flamejante. Tomei um susto quando tive a impressão de que me vi. Estendi a mão, num impulso, para pegar e uma chama lancinante me queimou os dedos. Recuei. Voltei a olhar ao redor e, a exceção daquele centro luminoso e quente, a sala parecia não tem cantos, se estendendo indefinidamente para todos os lados até adentrar uma área escura. Fiquei curioso e me afastei um pouco da fresta. Senti a temperatura amenizar-se e, longe da extrema luminosidade, comecei a perceber que naquele escuro salpicavam diversos pequeninos pontos de luz distantes. A sala era muito maior do que eu pensava. Acostumado com o calor da fresta e da segurança que me supria, jamais pensei em olhar ao redor, enquanto a sala crescia. Tudo para mim respousava na expectativa de poder ver e, então, decorar minha sala. Notei que, mesmo um pouco mais distante da fresta e suas chamas, ainda estava quente demais e mesmo o chão mostrava rachaduras que se prolongavam por debaixo de meus pés. Não queria cair ali dentro. Puxei uma poltrona chamuscada e afastei até a borda da luz, muito mais longe do que aquele antigo canto ficava. Senti-me bem, aquecido, mas não muito. Via com muita clareza os tantos pontos de luz diferentes. Pareciam iluminar de cima para baixo diversas superfícies, algumas no mesmo nível que eu, algumas mais baixas, outras vazias, outras ainda pareciam ter pessoas, todas, no entanto, de cores diferentes. Ao lado da chama nunca pude ver isto. Sentei na poltrona que, estranhamente, na penumbra parecia ter perdido seu chamuscar. Ao lado dela, um bloco de notas e uma caneta. Virei de frente para uma daquelas luzes e me pus a imaginar. Cada página do bloco tinha uma seta e cada seta tinha uma cor diferente e apontava para um lado diferente.
Acordei de súbito. Eram 11 horas.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Viver na Periferia é uma treta!


 Viver na periferia é treta.

Hoje em dia é comum a hipocrisia alastrada.
Afinal, aquilo que o sistema mais produz e que, invariavelmente, põe em questão a sua própria existência, quando não pode ser mais negado, deve ser integrado.
É assim com o capitalismo. E não há nada que ele mais produza que a pobreza, as periferias, os rincões segregados e os indivíduos expropriados, sugados, atomizados, isolados, desprovidos de si mesmos.
Houve um tempo em que ser periférico, ou seja, trabalhador, morador dos indesejáveis, porém necessários, bairros de escravos assalariados, era um motivo de humilhação aberta, de sorrisos amarelados, de desqualificação moral e profissional. Falava-se nos corredores, agia-se nas salas de RH, erguiam-se barreiras sem pudores. O CEP e sobrenome limitavam abertamente.
Isso mudou. Uma das características marcantes da sociedade da troca de valores (ou dos valores de troca) é sua elasticidade. Até arrebentar, o elástico social, a cola social hipócrita do capitalismo ainda terá de ser confrontada por uma tensão sem trégua, nem precedentes. Não é o caso, atualmente.
Hoje, as fronteiras do consumo abarcaram a periferia. O CEP e sobrenome impedem promoções, contratações, acessos a mestrados, universidades, oportunidades, de forma maquiada, geralmente detrás de alguma razão muda.
As classes médias e os filhos da burguesia se apropriam, consomem as gírias, vestimentas, trejeitos, produção cultural da periferia e geram seus legítimos híbridos sociais.
Nada disso é novo. Ao longo da história destes últimos séculos, a validação social da cultura do peão e sua mercantilização tem sido a regra. Blues, rock, rap, funk, jazz...
A escala e os resultados, no entanto, distoam.
"Favela no topo; a favela venceu; pretos no topo; progresso pra firma", são os jargões da moda há bons anos.
A peneira tem seus grãos. Estes, exasperados com seu aparente brilhantismo, atuam, con$cientes ou não, engrossando o discurso: "queremos representatividade, nosso lugar de fala, basta acreditar".
A periferia e a consciência dos peões nos guettos maquiados são inundados de desejos de grandiosidade, posses, ostentação, destaque moral e financeiro.
Todas variações do mesmo discurso da ilusão, a velha mentira liberal da Meritocracia.
Drones cortam os céus acima de morros com casas empilhadas entrecortadas por becos e vielas estreitas. Edições perspicazes tratam de captar o belo pôr do sol da aglomeração humana.
A favela é transformada em patrimônio nacional, "diferencial comparativo" do turismo, atrativo para fotos, tours, caminhadas e, a depender do bom contato, de dia ou de noite, como boa fonte dos tão consumidos aditivos morais que ocupam papel nada desprezível na cartela do consumo pequenoburguês.
É claro que o esgoto a céu aberto não aparece nos spots publicitários.
É sempre uma bela tomada de uma serra de Mata Atlântica, praia do Rio de Janeiro, quando não de crianças correndo em ruas de terra, senhorinhas caminhando sorridentes, trabalhadores precarizados alegres, fazendo alguma entrega ou serviço enquanto acenam para a câmera.
O velho mito do "brasileiro cordial" elevado a monumento cultural para o conforto do cliente.
As tomadas agem em tempo futuro. O tempo do desejo. O desejo que as classes médias tem de expiar um remorso social herdado. De sair de suas estruturas regradas e sentirem um pouco daquela realidade que, ainda que dura, não deve ser tão amarga afinal.
Não será difícil para a emissora encontrar algum abobalhado que, com trejeitos embrutecidos ou simpatia injustificada, fale sobre como na periferia não existem "só coisas ruins", como é um lugar de "gente boa, apenas esperando uma oportunidade", "de cultura, arte e criatividade", ou seja, um ponto turístico desejável - e até invejável - para o cartel de viagens e experiências dos privilegiados.
Gringos, de dentro e fora do país (porque se existe uma Jaboticaba brasileira é esta figura do estrangeiro em sua própria terra natal, divorciado da realidade) afluirão feito ribeirão para as favelas, periferias, pancadões, mostrando em seus stories a consciência empreendedora, a criatividade econômica do povão, sua resiliência, essa palavra que age como tempero para a exploração.
Fotos, miçangas, milhares ou milhões de horas de conversas, vídeos do youtube e relatos serão erigidos para falar da doce hospitalidade dos pobres brasileiros, tão sofridos, mas tão gentis e batalhadores.
Assim se ergue o produto cultural, o nicho de consumo, perfeito para o Capital.
Toda a situação é muito sofrida, é claro, mas não deve acabar, sob pena de não suprir a demanda turística por "sentir a realidade" desse povo guerreiro.
A empatia, o sentir a dor do outro, não é nada além de um artigo a ser apropriado, um Produto a suprir uma necessidade, até que essa se faça presente novamente.
E sempre haverão pobres para suprir a ânsia por superioridade moral e chacoalhar a crise de identidade da playboyzada.
Ocorre que na periferia viver é uma treta.
Ninguém pára a tiazinha sorridente do spot para saber o que ela comeu no dia anterior.
Ninguém se importa se um bairro de periferia tem esgoto a céu aberto, ruas esburacadas, nenhum aparelho publico a não ser as incursões policiais, um posto de saúde superlotado ou uma escola caindo aos pedaços, tudo a 200 metros do bairro bacana da classe média, equipado com todas as comodidades da vida contemporânea.
Quando os poucos privilegiados, que chegam a obter algum lugar à mesa da patronal, eles mesmos se tornando patrões, falam sobre "a favela no topo" ou " a favela venceu", ajudando a criar e manter o consumo do produto Quebrada, estão, de certa forma, certos.
O topo é isso mesmo. E chegando lá, a favela venceu de que forma?
Pelo macarrão com salsicha e, quando há sorte, feijão, que comem milhões de brasileiros trabalhadores?
Pela violência policial, invasões domiciliares, execuções, que tornam ficções ridículas as garantias de "liberdade de expressão, de reunião, de pensamento, inviolabilidade do lar"?
Pelos trabalhos precários em aplicativos, pela informalidade, pelos idosos vendendo panos de prato no farol, sorvete nas ruas, muambas no centro?
No vagar cotidiano daqueles que ainda não desistiram de procurar emprego e se humilham pedindo para o motorista deixar entrar por trás no busão, pois não tem grana da passagem?
Na realidade de milhões se pobres se acotovelando, amontoados em barracos ou casas precárias?
No individualismo e na competição brutalizada, fonte de mortes por banalidades todos os dias?
Na desorganização e despolitização ena inexistência de um norte coletivo devido a luta feroz para poder sobreviver até o próximo mês?
No fundamentalismo evangélico alienante e intolerante, que transforma jovens em cordeiros fiéis da própria exploração?
Na tirania da lei do mais forte, presente e dominante em todas as quebradas?
Não.... Esta realidade não faz parte das fronteiras do consumo. Estes bastidores inconvenientes são colocados de lado ou, quando muito, mencionados com alguma frase condescendente sobre superação.
Esta amarga realidade é, inclusive, exaltada como a fonte geradora dos "gênios periféricos".
De fato, quando chegam as figuras da "elite periférica", autoexaltadas como gênios únicos, ao "topo", aos mesaninos da "high society", estão, em certo sentido, certos. O topo é assim mesmo, o terreno da hipocrisia.
É claro, nem tão alto, pois os andares superiores seguem para os herdeiros das dinastias aristocráticas, escravocratas, que lhes proscrevem o acesso às maravilhas da vida burguesa bilionária.
E sabe o mais surreal nisso tudo? Uma vez ali, a revolta que os toma não é a limitação do acesso de 9 em cada 10 pretos, pobres e perifericos, a esse topo. Não é a trilha de crânios pisoteados pavimentando uma vida confortável para poucos.
É, justamente, a de não poderem, eles mesmos, os gênios, acessar tais espaços.
Brigarão raivosamente, arrastando a simpatia de parte dos explorados, por mais espaço, pela integração na sociedade de exploração, pelo seu direito de obter a auto-estima de ser um grande capitalista.
Seus ídolos não são os revolucionarios, mas os que jogam melhor o jogo. Seus sonhos não são coletivos, mas orbitam seus umbigos inflados. Seu horizonte é apenas seu, os outros "que lutem".
Não, a periferia não é o lar das virtudes humanas. E eu tô farto dessa cantiga burguesa.
Enquanto tento me concentrar para escrever este texto, a vizinha liga o Malafaia, as nove e meia da manhã, no máximo. Entre gritos de louvores em línguas, num legítimo surto psicótico, manda seus filhos, crianças de menos de 6 anos, à merda enquanto lavam o quintal cheio de bosta dos cachorros. A bosta que eles ainda não comeram, por falta de ração. Abrupta, berra pelo mais velho - "filho da puta" - e chuta o cachorro com o focinho enfiado nas fezes. Em seguida começa a cantoria insana novamente.
O marido, bêbado ou drogado, chega à porta de casa e manda o mais velho escorraçado chamar "a puta da sua mãe" e trazer a chave. Entra. Começam a se xingar - "puta, nóia" - e ouço batidas na parede, choros, berros. A vizinhança calada. Os passarinhos capturados pelo drogado cantam, como querendo fugir desse inferno.
O bêbado sai tropeçando pro BBB da quebrada: a boca, o bar ou o bico. Deixa a merda do portão aberto. Os cachorros esfomeados sobem minha escada e começam a fuçar meu portão, tentando pegar a ração dos gatos, logo à frente.
Mais acima, um moleque, tatuado, óculos lupa, moto CG, bate a porta e, aos berros, expulsa uma menina com uma criança no colo. Outra criança sai correndo de dentro da casa, com uma faca na mão. O moleque xinga a mulher, que berra impropérios no mesmo tom. Uma mulher desce correndo e chamando o nome do cara. É sua mãe. Mulher e mãe tem o mesmo destino na boca do néscio: "Vão tomar no cú, vão cuidar da vida de vocês, leva essa criança pra sua casa, sua puta".
Topo? Eu quero é dinamitar esse prédio, porra.
*
Este é o primeiro texto do projeto chamado "Prosas proscritas".

quarta-feira, 17 de março de 2021

O que mais é preciso pra percebermos que isso é uma GUERRA?

 


O que mais é preciso pra percebermos que isso é uma GUERRA?

Vasculho mentalmente as opções de como começar um texto em meio a esta situação. O esforço, excruciante, é totalmente em vão.

Me somo a triste turba de colegas e amigos que já não conseguem nem acompanhar os jornais, nem pensar em outra coisa.

Por vezes 3000 mortos por dia, noutras os recordes de 649 pessoas mortas em SP, ainda outra a taxa de uma morte a cada 2 minutos nesta cidade. Informações rodopiantes que pressionam o peito e engolem qualquer traço de esperança que possa surgir num futuro "estável" nestas terras.

Abrir os jornais é para tanto dar de cara com este absurdo, quanto uma fonte de surrealidade diária.

É absolutamente desconcertante assistir as declarações destes asnos vestidos de generais ou do criminoso presidencial. Ao mesmo tempo, é repugnante a vagarosidade incompreensível, a lerdeza, a pompa e etiqueta enjoativas, com que a mídia patronal de Globo, CNN, record e afins discutem os "equívocos" presidenciais e os "excessos da classe política".

Como se o ritmo da epidemia fosse um detalhe e não estivéssemos num país cujos hospitais NÃO TEM MAIS VAGA, colapsaram. Como se os enredos pessoais no Brasil não estivessem sendo encerrados a taxas de 3 mil por dia. Como se 10 aviões boiengs ou 250 boates Kiss não estivessem ocorrendo todos os dias. A vida, já sem muito sentido intrínseco, inerente, em si mesmo, deixou de ter qualquer significado. Virou uma ocorrência, um acidente, que “se eu tenho, tô no lucro”.

Não há outro nome para isto. E eu já cansei de dizer qual é. Guerra, luta de classes, genocídio, tudo isso contempla mas não expressa o sentimento.
A classe dominante de nossos tempos, os patrões, não é uma classe uniforme, homogênea. Ela (ou melhor, suas frações) se unifica, com todas as disputas que existem entre si, quando tem de enganar aqueles que domina. As duas ferramentas que ela tem são a enganação ou a repressão. Hoje, combina as duas.

Mantém a peãozada no cabresto dos transportes lotados e mantém TUDO aberto (veja que fabricas, telemarketings, todo tipo de estabelecimento produtivo segue aberto, mesmo na tal "fase vermelha"). Se não trabalhar, não come. Entenda: se não trabalhar MESMO QUE POSSA SE INFECTAR, não permito sua existência. E assim a turba caminha feito gado para o abate.

Se passar fome e decidir agir nas brechas, furtar, roubar ou vender mercadorias ilegais, já sabe: a segunda mão entra em cena. Repressão, prisão forjada, assassinato, espancamento. A vida vale pouquíssimo, em geral, por aqui. Menos ainda agora. Se não te matarem nas voltinhas dadas no camburão da Blazer, tossem na tua cara pra você morrer na tranca. 40% dos presos nem julgados foi no Brasil. Entende? Ser preso, hoje, é também pena de morte.

Como consolo aos "bons cordeiros da sociedade" mostram seu olhar paternal responsável e proclamam suas "restrições" mentirosas e farsescas, pensadas pra passar uma sensação de segurança e controle, não servem de nada. Fase vermelha. Igreja, culto, role, festa clandestina, fábricas, transporte lotado, tudo aberto das 5h as 20h. O covid, respeitoso respeitador natural das regras sociais humanas, aguarda e espreita para começar seu massacre após tal poderosa restrição.

O mundo natural e o Covid estão, desde março de 2020 na ofensiva, se adaptando, ficando mais letal e transmissível, pouco se importando com as disputas mundanas e de classe entre os humanos. Nestas, ainda temos de viver com a desesperança insuportável de uma disputa entre o genocida gourmet e o genocida tiozão de boteco.

Uns falando contra máscara e vacina, outros sorrindo debaixo de sua máscara enquanto mandam batalhões e batalhões de trabalhadores, aos milhares, se aglomerarem pelo sacrifício ao deus Lucro($). Por detrás, o que lhes importa? Quem vai governar sob a pilha de ossos daqui 2 anos, em 2023. Essa é a verdade sobre Dória e Bolsonaro.

A esta altura, qualquer um, já aturdido, pediria por uma pausa no texto pra, quem sabe, olhar uma luz no fim do túnel.

É triste pensar nossa atual situação pelos olhos da história. Nossa colonização já começou como um empreendimento comercial, uma enorme empresa agrícola colonial voltada para proteger as novas posses portuguesas e ajudar a sua nascente burguesia, fundida a aristocracia, em sua disputa com os holandeses.

Por aqui o problema do povoamento sempre esteve ligado ao problema da mão de obra. Uma vez esgotadas as fontes nativas, por outro genocídio de proporções similares, se resolveu o problema com o sequestro de pretos africanos por 3 séculos. Como a produtividade do trabalho se impunha de maneira tirânica e o capitalismo chegava a sua fase de expansão mundial, o trabalho negro compulsório era substituído pelo semi-compulsório e, mais a frente, pelo de pobres trabalhadores de origem européia.

Essa herança cultural, histórica e social, deixou marcas profundas, vistas na enorme violência de classe cometida contra os pobres e trabalhadores. O sinhô virou sinhô patrão, nos diria Graciliano Ramos. E essa posição, mantida por séculos, maquiada e reforçada, tem raízes psicológicas profundas. Não é coincidência o culto a ascensão social e mobilidade através da ideia farsesca de meritocracia. Não é acaso o culto ao patrão, a defesa selvagem da propriedade, o individualismo e enorme agressividade em busca “do lugar ao sol” nestas terras. As ideias dominantes são as ideias da classe dominante.

E esta nossa classe dominante, com as transformações que teve ao longo dos séculos, nas idas e vindas da luta de classes, com as quais aprendeu, manteve bem as bases de suas ideias.
Também por isto não é de se espantar que hoje lidemos com movimentos antivacinas, atos contra lockdown, empresários falando que “o povo deve se sacrificar pela economia (deles)”. São as ideias que dominam.

De onde se esperaria uma saída, da ilustre e auto-definida “esquerda”, não se vê nada. A história dos respiros recentes dos trabalhadores também não é muito animadora. Veja, não é que não tenham existido ações de milhares, de massas, coletivas. Existiram. No entanto, a história destes levantamentos se deu sempre por dentro das margens estreitas desta tradição de dominação.

 Todos os grandes respiros de trabalhadores se deram ao redor de figuras messiânicas, quase (quando não diretamente) religiosas, incorporando a ideia de que guiariam as massas despossuídas a sua redenção e melhoria gradual da vida. Prestes, o trabalhismo de Jango, o PT e Lula. Isso sem mencionar Getúlio Vargas que, sendo o provável pai desta construção, não tinha a intenção de dar nenhum respiro, mas organizar o cortejo: domesticar a revolta popular e fazê-la rodar nos trilhos da ordem.

E todas, sem exceção, conduziram a traição e posterior piora de vida das massas trabalhadoras. O PCB e o trabalhismo traíram aceitando, sem luta, a ditadura, o PT e Lula pactuaram com os generais e entraram nesta democracia fajuta e, uma vez nela, governaram com os herdeiros diretos (Paulo Maluf, PP (onde Bolsonaro esteve durante todo o governo Lula), PMDB, todo tipo de fisiológico do centrão, depois, Joaquin Levy, Bradesco, Itaú, etc, etc).

Hoje, lendo o jornal, vejo na matéria ao lado que o centro do debate político é a Vendetta de Lula contra Moro e sua “habilidade única” de articular aliados para 2022. Um deles, leio atônito, Delfim Netto, o ministro da Ditadura Militar, que, sendo um vaso tão ruim, nem na epidemia quebra. Pt e PCdoB, grande parte da "esquerda" brasileira e comandantes de duas das maiores centrais sindicais do País, CUT e CTB, agitam, não as fábricas e empresas com greves, mas redes sociais, com memes. PSOL se apressa a dizer que é “lulalá” em 2022 e que, até lá, “vamos resistir”. Ciro balbucia algum egocentrismo. O centrão se esparrama em verbas. O STF se lambuza em nuttela e permite aos militares e Bolsonaro seu teatro. Vacinação 10 vezes mais lenta do que necessário. Vírus mais letal. A primeira ou segunda maior cidade da América latina COLAPSADA, vendo seus mortos aglomerados em contêineres.

Sinto uma pontada no estômago. Qualquer sintoma que tenho me vem a enxurrada de matérias na cabeça. Me transporto mentalmente para um leito de UTI. Ora como médico, ora como paciente. Sinto o impulso de ver o oxímetro, de medir a temperatura. Está tudo bem.

Mas não está tudo bem. Um país que aceita 3 mil (de novo: TRÊS MIL)[DE NOVO: TRÊS MIL PESSOAS, DEZENAS DE MILHARES DE HISTÓRIAS APAGADAS POR DIA(!!!!!)] sem revolta, sem alarde, sem fúria, não está NADA bem. Uma sociedade que aceita ser massacrada deste modo, é doente.

Mais precisamente, NÓS trabalhadores que aceitamos que nossas organizações e representantes tenham a INDECÊNCIA de falar em votos nessa situação; que tenham a postura ARQUEROSA de dedicar esforços pra fazer teatro no parlamento ao invés de lutar COM TUDO POR UM LOCKDOWN, que seja mantido CONFISCANDO dinheiro que EXISTE nos lucros dos Bancos e das empresas; estão PROFUNDAMENTE doentes, entorpecidos, abatidos e desconectados da própria realidade.

O Brasil não é só inovador no mundo natural, formando novas variantes letais de Coronavirus.

No plano Social o Brasil apresenta ao planeta e à História suas mais tenebrosas criações: No lugar da luta de classes, o MASSACRE DE CLASSE e a Reificação absoluta.

Queria ter algo mais gritante e expressivo do que um Caps Lock. Não tenho. E menos ainda um final textual de mais impacto. Se assim o quiser, faça como eu: Leia os jornais.

sábado, 21 de novembro de 2020

O dia em que a urna parou

 O DIA EM QUE A URNA PAROU



O quanto é necessário pra ser a gota d'água? Pra derramar o balde de insatisfação, desespero, sofrimento e raiva?


As vezes é sou um vídeo. Mas não um vídeo qualquer. João Alberto foi espancado até a morte, no Rio Grande do Sul, por seguranças da rede bilionária de supermercados, Carrefour. Um dos espancadores possuía o "know How" do ofício genocida: era um policial militar. 


Um dia antes do dia da consciência negra. 


No dia seguinte, o vice presidente do país, General Mourão, afirma, "com toda tranquilidade", que não existe racismo no Brasil. Detrás de todo o aparato estatal que as quatro estrelas lhe proporciona, tripudia, com tranquilidade, de mais esta morte banal.


Tão banal quanto a de Cláudia, João Victor, Douglas, a menina Ágatha e tantos e tantos outros e outras, cujas características unitárias são evidentes: pobres, trabalhadores e pretos.


Talvez instigados pela hiperconexão contemporânea, que liga instantânea e cotidianamente nossa realidade racista às notícias dos protestos contínuos desde a morte de George Floyd, em diversos Estados dos EUA, ou simplesmente já fartos de tanta espera e sujeição, parte das manifestações no dia da consciência negra radicalizaram-se. 


Chutaram o pau, a barraca e as promessas de "pesos e contra-medidas" moderadores da democracia dos ricos e se lançaram a queimar e depredar lojas da rede, aparentemente, intangível, Carrefour. 


Cenas lindas de ódio, indignação e raiva circulam a internet, trazendo algum alento e esperança de que, enfim, as coisas podem mudar.


Nas eleições, o recado também foi claro, a quem quiser, é claro, extrapolar o autoengano e ver: 30% dos brasileiros no país e 40% dos paulistanos não votaram em ninguém. Uma cifra enorme, que acompanha a série histórica de crescimento das abstenções, nulos e brancos. 


O significado é nítido: mergulhados na luta pela sobrevivência, esmagados pela exploração econômica e cansados das mentiras de uma falsa igualdade política, massas de milhões de brasileiros dão seu grito mudo, demonstrando a crise de representatividade e legitimidade do regime democrático liberal. 


Não surpreendem, no entanto, as narrativas que se seguem no mal chamado "campo progressista", esse conjunto difuso e vazio composto por aqueles "representantes do povo" sempre dispostos a surfar a insatisfação popular para, neutralizando-a, conduzi-la a votos que lhes garantam seus privilégios e acesso aos cargos de gestores do capitalismo.


Para um destes representantes, sempre o mais descarado porta voz do oportunismo eleitoreiro, todo esse quebra quebra deve ser apurado. 


Maringoni, quase pedindo a prisão dos que quebram as lojas, afirma ser muito estranho nas vésperas da eleição tamanha revolta e que isso deve estar a serviço de desestabilizar as candidaturas Boulos e Manuela D'Ávila, candidatos a São Paulo e Porto Alegre pelo PSOL.


Nada de novo. Em 2013/14 estes representantes foram na mesma linha da política já conhecida de dividir e conquistar: "os atos são pacíficos até que são 'infiltrados' por Black blocs violentos e terroristas". 


Isto no Brasil.

Ora, quem em sã consciência poderia esperar uma revolta desse tipo após mais uma morte banal? E ainda logo antes das eleições? Só pode ser a direita! E mesmo se não for, são os inconsequentes, sectarios, violentos, tresloucados, estes que tem de ficar no ostracismo social, bem longe de nossas vidas. Justo aqui? 50 milhões de informais, 15 milhões desempregados, centenas de milhares de mortos pelo vírus, dezenas de milhões de pessoas vivendo na extrema pobreza e fome... É ruim, mas não é pra tanto... Será que só isso é a motivação pra quebrar umas vidraças e queimar uns Elma Chips? Desconfiam e pedem apuração...


A conclusão é que, atrapalhando os pacíficos, devem ser expulsos e denunciados, ou seja, "com a gente lidem com a política, com eles, com a polícia". 


Não importa que morram de fome. Não importa que sofram no desemprego. Não importa que percam pais, mães, filhos, tios, avós para o vírus (aliás, LOCKDOWN pra salvar vida de peão, pra essa gente que quer votos do empresariado "progressista", nem pensar!). 


Não importa nem que estes sejam os próximos a morrerem espancados, fuzilados, estuprados, executados, na porta de mercados, nos becos dos morros, nas periferias e nas ruas, pelo Estado e o Para-Estado.


Como não podem entender que vencer uma prefeitura está acima disso? Como podem sucumbir a tamanha irracionalidade e raiva?


Vivemos em mundos divorciados e cindidos. 

A epidemia elevou está conclusão a quem quiser ver. 

Para uns, tudo se trata de conduzir o ódio popular para as vias institucionais, para a vida política oficial,  o sufrágio e a legitimação do regime político (e seus objetivos materiais pessoais). 


Não é surpreendente que tenha sido em governo destes senhores que a lei de drogas (2006), responsável por prender milhares de milhares de jovens negros com pequenas quantidades de droga ou muitas vezes sem nada, nos autos forjados, tenha sido aprovada como concessão as elites temerosas de uma revolta preta. 


O fato é que estes não querem mudar nada. O teto da proposta destes "amigos do povo" é se proporem governo com uma cara de esquerda para, uma vez lá, governarem, com uma cara de centro, junto de todos partidos de direita que queiram compor a "governabilidade", dando todos os benefícios e privilégios aos ricos burgueses, aprovando suas leis draconianas (de drogas de 2006, antiterrorismo, etc) e, no caminho, engrossando suas pretensa biografias de estadistas aburguesados. 


A mudança, no entanto, está do outro lado. Está na chama que arde. Dentro do Carrefour e no coração de cada preto e branco pobre e trabalhador que começa a perder a paciência e que, da indignação inssurreta com esta morte nada banal, passa a enxergar o que importa, além do teatro eleitoral. 


Desta compreensão, podem surgir os frutos mais valiosos da luta de classes. Aqueles e aquelas que entendem que tudo tem a ver com o poder. E o poder, este centauro, só se impõe pelo consenso ou pela ameaça ou uso da força. 


E para chegar ao poder, das ações radicalizadas e impacientes, virão conclusões radicalizadas sobre que força é necessária para obter o poder real e que sociedade e  regime político NOVOS queremos. 


Disto, pacientemente, cada preto e preta, trabalhador e trabalhadora, desprezando o teatro patronal, essa forma de domesticar a insatisfação em uma urna eletrônica, com promessas de um futuro que nunca chega, construirá uma nova sociedade, das cinzas de tudo - e todos - que tem de queimar para isso. 


Que os canalhas oportunistas esperneiem. Um saque, uma queima, um quebra quebra é muito pouco perto da conta que nos devem. 


Nós queremos mais. 

Quereremos a tua alma, Capital.