domingo, 11 de maio de 2025

A Pedra e a Espiral


 - Ah, que se foda. Hoje vô atrasar.


Já tava bem pilhado a essa altura, quando parou para tomar um pingado e comer um bauru na lanchonete, a uns três quarteirões do trabalho.

Esse hábito de comer antes do trabalho havia emprestado do pai, que vez ou outra o levava pra ficar no almoxarifado da empresa durante o turno. Lembrava que sempre chegavam à empresa naquele momento do fim da madrugada e início da manhã, quando o sol parecia surgir devagar no horizonte, com a mesma preguiça de quem empurra sonolento as cobertas e vira o corpo pra decidir despertar.

Depois de algumas crises e demissões, em geral comia nas lanchonetes da região mas, às vezes, a empresa, como os chefetes gostavam de sublinhar, “dava” um pão com manteiga pra cada funcionário e pressionava as tiazinhas da limpeza a fazer café, distribuídos em quatro garrafas, pra turba de insones que iniciaria o dia na fábrica.
Era o que o velho contava. Quando estava lá, Wesley não pensava em nada disso. Ele só vivia e gostava de poder passar um dia de trabalho com o pai.

Enquanto engolia o pedaço de pão ensopado no copo americano preenchido até a metade, seu pai sempre resmungava, como que só pra ele ouvir, “a gente tem de agradecer pelo trabalho que nos dão”. Depois de falar, dava uma olhada rápida ao redor e curvava a cabeça em aceno pra alguns colegas da fábrica que também paravam pra comer algo antes do turno.

Após alguma idade, parece que as pessoas mais velhas se agarram a bordões e frases de efeito, como forma de manter um senso de sentido na vida.
Como uma prancha no alto mar de mudanças e solidão que os velhos tem de enfrentar, tentam se equilibrar afirmando suas sabedorias passadas, das quais acreditam ser representantes destacados.

Wesley sempre lembrava do pai dizendo que ele não gostava de confusão. Quando ouvia algum comentário malicioso sobre o milagre de ter café, falava pra Wesley, com aquela testa franzida e expressão sisuda:

- Você tem de ficar longe dessa gente que só fica reclamando. Pra eles você dá a mão e querem o braço. Qual o problema se só hoje tem pão? Que obrigação o patrão tem de dar pra gente?

Enquanto tomava os últimos goles do pingado, Wesley mordia o pão e contabilizava quantos dias ele tinha pra pagar o Paulo. Calculou que até quarta ele conseguiria. Não dava pra adiar mais. Talvez na quinta, se ele conseguisse inventar uma outra história mais convincente.

Enquanto pensava nisso, lembrou do aviso que o policial lhe deu.

- Até o meio da semana que vem eu quero a porra do meu dinheiro na minha conta. Cê já sabe meu pix, faz essa merda. Cê tá achando que tá lidando com quem, seu filho da puta? Se eu entrar aí – e não vai ser sozinho – a gente vai aloprar sua casa inteira com quem tiver dentro.      

Em geral o tempo no trabalho passava rápido. No almoxarifado na Barão de Duprat, trampava no estoque subindo e descendo todo tipo de muamba. Nos dois andares do amplo galpão dos armarinhos, ele sempre encontrava uma canto pra dar um nó depois do almoço ou quando sentia muitas dores nas costas.

Sempre que deitava numa daquelas lonas surradas entre prateleiras – com habilidade encontrando um ponto em que a lâmpada estivesse queimada – lembrava do seu velho e das visitas que fazia a sua fábrica. Pensava na ironia de estarem trabalhando com a mesma coisa, ainda que o velho, na época das visitas, já não carregasse mais nada e fosse uma espécie de encarregado da peãozada do almoxarifado.

Por vezes, tomava um susto quando, andando pelos corredores, olhava-se nos reflexos das janelas engorduradas  e via em sua forma de andar um semblante do pai.
Emudecia, assustado e, sem verbalizar, afastava o pensamento, como que fugindo de uma premonição de destino.

Naquele dia, já no fim da tarde, decidiu não enrolar na saída. Deu um alô pro Cléber, despediu-se da Fátima e meteu o pé pela 25 de março, em meio a geleia de gente que descia escorrendo apressada pro subsolo do metrô.

Um pouco antes da ladeira, entrou numa viela sem saída, uma daquelas que parecem um cenário daqueles filmes de kung fu urbanos dos anos 80, pra fumar um cigarro e tomar algumas decisões.

Da outra vez tinha sido tudo de boa. É claro que o Paulo tinha de falar grosso. Ele no fundo era um cara firmeza. Emprestar dinheiro pra um monte de fudido que nem ele deve ser um puta trampo de risco. Mas ele sabia que “eu tardo, mas não faio, como diria meu pai”, pensava Wesley.

Tragando e pensando, as coisas pareciam mais simples de se ajeitar. O prazo não era tão curto, o agiota não era tão raivoso, o valor nem tão alto...

Um rastro de cinzas com brasas passou em frente aos seus olhos enquanto sua visão deitava na horizontal. Uma bota preta com um desgaste bem evidente toma o campo de visão e então mais um estrondo.

- O Paulo te falou, seu arrombado. Cala tua boca!
Erguido pelas axilas, o grupo de homens arrastou o corpo quase inerte de Wesley até uma Van estacionada no final da rua.
Sua traseira tinha uma daquelas portas que abrem e no fundo da Van pareceu que uma fileira de bancos tinha sido retirada pra acomodar os desafortunados que viessem a conhecer tal distinto meio de transporte.

Tudo acontecia muito rápido e Wesley, zonzo, tinha pouca capacidade de reter informações precisas. Eram três homens sentados e um motorista. Da fresta da porta da van, conseguia ver a luz do sol sendo dirimida, diminuindo, até dar lugar aos faróis de carros e luzes das propagandas nas fachadas. A noite se estendia.

Numa golfada de ar desesperada, Wesley arregalou os olhos e se levantou abruptamente para tentar ver pela janela da porta para onde ia.

Um segundo choque irrompeu com um barulho alto e tornou a lhe deixar zonzo mas, dessa vez, parecia que o interruptor de desligar da sua cabeça tinha sido acionado em outra parte, de modo que o efeito da batida foi, também, diferente, mais retardado, dando um sono que, pouco a pouco, deixo claro que não lhe daria a menor chance de escapar.

De um fundo escuro e imutável, aquele tipo de nada que a gente só experimenta quando dorme mal sem sonhar, mas que, ao mesmo tempo, transmite uma paz aparentemente perpétua capaz de ser vivida, borrões vermelhos e gritos começaram a pulular.

Sentiu que estava em uma sala muito grande, espaçosa, mas mal iluminada.

Numa das suas laterais, um beliche com uma menina descabelada brincando em cima, parecendo mais velha. Uma lâmpada incandescente descia pendurada por fios retorcidos no centro da sala. Dava pra ver uma porta que conduzia para um cômodo com uma luz mais forte, de onde vinha uma voz bonita que cantarolava uma música antiga e familiar

- Deixe-me ir

Preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não choraaaaaar


A música continuava, a garotinha brincava dando gargalhadas enquanto simulava gestos e movimentos com sua boneca e ele girava pra um lado e pro outro. Tentava se levantar e se mexer, mas não conseguia. O máximo que podia fazer era balançar seu corpo. Percebeu que estava em cima de uma toalha enorme, como nunca havia visto. Percebeu também que a cama lhe parecia muito grande, como aquelas que viu quando visitou aquela casa de turistas em Itú com a Vó Lena. Flutuando naquela maciez imponente, ele percebeu uma vontade enorme de rir. De repente, gargalhava como nunca em anos! Ria, batia os braços na toalha macia, chegava até a soluçar...
Por alguns momentos se deixou levar totalmente por aquele momento e desejou nunca mais se retirar. Tudo parecia tão grande, tão espaçoso, tão macio...

Um barulho alto interrompe a percepção. Nesse momento, Wesley é tomado por um sentimento de desespero incontrolável, visceral, banhando todo seu ser e encontrando vazão num choro estridente e alto. Podia perceber que alguma cena se desenrolava, mas não conseguia desviar do sentimento urgente que tomava seus sentidos. Seu choro copioso era estranho, entremeado por uma voz estridente que, apesar de lhe soar familiar, não parecia ser sua, soando por aguda e irregular demais.

De relance, percebeu que a porta do cômodo estava escancarada e, na entrada, via uma mulher de vestido florido até os joelhos igualmente desesperada.

Os balbuciares lhe soavam indistinguíveis, mas diante de três homens a mulher esperneava, chorava e gesticulava como que implorando algo. Num gesto tempestuoso, enquanto um dos homens, usando um boné cinza com um símbolo estranho no meio, agarrava os dois pulsos da mulher e a balançava, o clima de terror adquiriu proporções ainda mais agudas.

Wesley percebeu que seu corpo girava de um lado para o outro, mas não conseguia deixar de se apoiar em suas costas na cama, de modo que sentia seu peito encharcar com o escorrer das lágrimas. Os berros e batidas soavam mais altos do que qualquer coisa que lembrasse ter presenciado e, então, os outros dois homens começaram uma destruição absurda.

Ouvia o estilhaçar de copos, as dobradiças de portas e tábuas de prateleiras arrebentando e, de repente, sentiu sua cama tombando para um lado até ser brutalmente lançado no ar. Conforme foi propelido, sentiu os sons se transformando, os berros diminuírem e a cena se distorcendo.

Teve o impulso de proteção de erguer as mãos na frente do rosto e ao fazer o gesto sentiu como se uma bacia de água gelada tivesse sido jogada em sua cara. Abriu os olhos esfregando o rosto e percebeu seu entorno se estabilizar.

Estava no chão, jogado num piso laranja craquelado e carcomido. Encharcado, tentou sentar-se na poça ao seu redor, recebendo um tapa na cabeça que lhe fez retornar a posição horizontal.

- Fica na porra do chão, Caralho! O Paulo tá chegando.

Wesley não pareceu reconhecer o cara que lhe desferiu o golpe, mas a voz de quem lhe deu a ordem parecia familiar. Era um homem negro, estatura mediana, não particularmente forte, mas que, pelo peso, podia desempenhar bem o papel de leão de chácara que aqueles agiotas empregavam. Deitado sob seu braço esquerdo tentou ver detalhes de seu rosto. Sabia que o conhecia.

Aquele era o Cabo Matias. O filho da puta trabalhava na ronda escolar que rondava a Emei da Alice. Distraído ascendendo um cigarro, ele não percebeu que Wesley o havia reconhecido e continuou digitando algo no celular.

Wesley percebeu que estava numa espécie de quintal traseiro de alguma casa. Pela aparência do que viu ao seu redor, parecia alguma quebrada, com muros de tijolo sem pintura, conectados entre si por aquele característico cimento rústico e algumas vigas expostas.

Ver Matias exerceu em Wesley um efeito de terror parecido com o que experimentou naquela cama. A ideia de sua filha vulnerável todos os dias a qualquer ação daquele desgraçado embrulhava seu estômago e, assim, somada a dor de cabeça lancinante, uma náusea excruciante se instalou.

Outros dois homens, com volume de armas na cintura, olhavam por cima do muro e para o rapaz repetidamente, parecendo agitados. Matias escrevia rápido na tela com os doidos dedões.

- Chegou! Abre lá pra ele – determinou para um dos homens.

A ausência do homem durou uns dois minutos, sucedida da entrada de Paulo. Na horizontal, Wesley via sua silhueta se formando no corredor escuro e mal iluminado da casa, crescendo cada vez mais conforme os passos ganhavam peso e som mais fortes.

Agora suas botas estavam a um metro e meio da sua visão, de modo que levantou um pouco a cabeça para olhar o homem nos olhos.

- Boa noite, cidadão. Vejo que tá bem cuidado. Como dizem? Se o fulano não vai até a montanha...

Paulo interrompeu o aforismo com um sorriso de soslaio, no qual encaixou um derby meio amassado tirado do maço que estava no bolso da frente da farda.

- Precisava disso tudo, campeão? Eu te falei que o prazo vencia no começo dessa semana. Dessa vez você nem me escreveu no zap ou ligou choramingando, né? É... Acho que no seu caso precisava mesmo, tô ficando mole mesmo... um pretinho folgado tentando me dar perdido...

Nesse momento, Wesley olhou pro Matias, que tinha voltado pro quintal e estava encostado numa espécie de pilastra terminando a bituca que tinha sido seu cigarro. Ele olhou pro chão e desviou o olhar, enquanto soltava uma golfada de fumaça no ar.

- Agora vou te falar como é que o negócio vai acontecer – Paulo falou, apontando o cigarro, preso entre o indicador e o polegar, para Wesley.

- Não quero saber de chororô, nem quero saber por que que cê demorou pra pagar meu dinheiro. Cê me devia 15 mil. Agora, como o senhor não me pagou em espécie com aquele jurinhos de 3 mil que te garanti generosamente, sua dívida vai subir pra 25. E eu sei um jeito bem bacana de cobrar de um fudido que nem você.

Um calafrio subiu a espinha de Wesley. Ele não tinha os 15 ainda, se pá conseguiria uns 10 com o que tinha na Poupança da Cláudia, seu salário do mês e a venda da máquina e da televisão. Agora 25? Nem fudendo...

- Seu Paulo, pelo amor de Deus – implorava Wesley – o senhor sabe que eu dou um jeito, sou trabalhador, eu vou te...

- Porra de trabalhador, o caralho, seu nóia! – Paulo exclamou, enquanto desferia chutes na boca do estômago e na cabeça.

A sessão de espancamento não foi necessariamente longa. Para quem executava pareceu até relativamente breve. Já para quem recebia, estava começando a ficar difícil traçar o tempo das coisas. Em algum momento, a dor das pancadas parecia assumir outras formas. A cada chute na cabeça mal defendidos com os antebraços, a sensação de estar atordoado, um tipo nebuloso de impressão se instalava e parecia que Wesley iria cair novamente naquela cama de onde havia sido arrancado.

Com a vista nebulosa e a cabeça flutuando como um balão, Wesley percebia que entre um rompante e outro conseguia se apegar a algum fio de consciência conforme percebia o tilintar de um, dois, três dentes quicando a sua frente, no chão casquerado e, agora, avermelhado.

- Taí, ó! Essa cambada é burra demais... Agora além do preju no bolso, cê vai ter de consertar essa boca, seu viado! Hahahahaha –  Paulo gargalhava satisfeito.

- Ô, Seu Paulo. Calma aí. O cara tá apagando. A gente não preparou direito a cena. Se ele empacota vai dar B.O. – dizia o Cabo, apontando pra poça de sangue que envolvia o corpo retorcido e encolhido do rapaz.

Paulo tomou uns dois segundos demorados olhando e sentenciou:
- Tá bom, tá bom, Matias... Tô achando que a gente tudo é que tá ficando mole mesmo, viu, puta que pariu... Que que a gente já num fez por muito menos que isso? Pega esse filho da puta e leva lá pra cozinha. Vamo acertar os termos do serviço dele.

- Júlio, me joga um pano de chão aí e me dá a minha toalha. Tá em cima da mesa. – ordenou para o outro homem dentro da casa.

Com uma mão pegou a toalha, limpou o suor  e com os pé direito esfregou duas vezes o pano jogado no chão, como que fazendo menção para Wesley esfregar.
-  Vai neguinho, passa esse pano aí logo, tá ali a cândida. Não demora senão vamo chegar tarde e você não vai gostar se a gente ficar mais do que deveria hahaha – soltou um riso interrompido por uma tragada no cigarro.

Wesley fez o que pôde e, sem alguns dentes, sangrando pela boca e com todas juntas doloridas, esfregou, pediu outro pano, enxaguou e fez menção de terminar.

Paulo, cuja fruição da cena só não superava seu deleite pelo cigarro enquanto observava, jogou a bituca no terreno da frente, deu um sorrisinho e determinou:

- Matias, Julio, passa uma toalha na cara desse digníssimo senhor e vamo fazer o recolhe. Se eles se comportarem, não tem esculacho.

Os dois brutamontes, praticamente arrastando Wesley, limparam seu rosto, jogaram-no no sofá e, depois de lhe servir um copo d’água, mandaram-no sair do barraco e entrar na van preta e insufilmada.   

- Nós também somos civilizados... – comentou Paulo, com sarcasmo – você acha que vamos deixar um pai de família chegar sujo e com sede pra ver sua família?

O frio na espinha que Wesley tinha sentido ao reconhecer Matias retornara, mas, dessa vez, não era como uma pontada, tinha se tornado constante, numa mistura de frio com náusea.
Os passos do sofá daquele barraco decadente até a Van pareciam contidos por uma tonelada. Wesley pensou em tudo que podia fazer.

Quis agir como aqueles personagens de filme de ação que com aquele ferro apoiado do lado da porta poderia esmagar a cabeça de todos aqueles amaldiçoados e se livrar do problema.
Passou pela porta e o delírio assumiu outras feições.
Será que conseguiria correr, pular o muro e, pelo caminho entra os barracos despistar os captores? Daria tempo de chegar até a Alice antes deles?  E a Fátima? Ela não iria largar a casa toda pra fugir. Com certeza arrumaria um escândalo...

Quando percebeu, estava dentro da Van, sentado no meio entre os dois capangas, incapaz de pensar com clareza... incapaz de agir.
De súbito, enfiaram um saco preto em sua cabeça e tudo ficou preto. Não conseguia distinguir o que falavam Paulo e o motorista. Os captores ao seu lado pareciam quietos, mas faziam questão de vez ou outra dar uma cotovelada de alerta, seguida de gargalhadas, para lembrar Wesley a não tentar nada.

Uma freada brusca e o carro parou. Para Wesley, não havia se passado muito tempo, mas já estava escuro e não conseguia enxergar nenhuma luz subindo por baixo do saco preto.

Uma das portas abriu com barulho violento, seguido da ordem:

- Vai, filho da puta! Desce e caminha tranquilo, sem fazer escândalo. – disse Júlio, que parecia mais violento que Matias, indiferente, saindo pela porta do outro lado.

Ao levantar do banco com as mãos firmemente seguradas pelo capanga, Wesley pensou que iria desmaiar novamente. Estava de frente para sua casa. O portão de ferro estava entreaberto e a sala iluminada. A porta de casa deixava sair a luz e sombra de alguma figura em pé. Ao se aproximar, reconheceu a bota de Paulo enquanto subia os olhos e via Fátima e Alice abraçadas, no canto de um sofá, com uma expressão de horror e choro.

- Que porra é, essa?!! O que vocês querem? Tem um monte de vizinho aqui do lado, eu vou chamar a p...
- Olha aqui, piranha, faz isso que a gente volta e te apaga quando for levar essa quenguinha pra escola, ou quem sabe quando voltar daquela lanchonete de merda que você trabalha, tem tanto terreno baldio no caminho... – Paulo disse, calmo; perturbadoramente calmo.

 Fátima arregalou os olhos e abraçou Alice firme, enquanto pedia para ela segurar o choro e dizer que tudo ia ficar bem.

- Esse é mais um exemplar desses vagabundos que se acham espertos, minha senhora. Ele deve se achar mais esperto ainda, porque tá tentando foder com polícia, né? Você não queria a Polícia? Pois a gente tá aqui!
- O negócio é o seguinte – continuou Paulo –, seu maridinho tá me devendo 25 conto, com juro e correção, claro. Nós vamos ter de dar um jeito dele me pagar isso e vai ser hoje. Como podemos começar esse adiantamento?

Paulo, então, realizou uma calma varredura visual pela sala e determinou:
- Vai cambada, olha aí o que esse putos tem pra gente levar.

Os dois capangas se levantaram, encostaram a porta da frente, fecharam a cortina e começaram a abrir gavetas, chutar móveis, revirar todos cômodos.

Wesley tentava balbuciar alguma coisa para Fátima:
- Abor... Eu falei que pagava, vamo vender a máquina...

Fátima, percebendo que Alice começava a se render ao desespero, olhou com raiva para ele e virou a filha, comprimindo seu choro contra o peito e o sofá, enquanto a pilhagem continuava.

A pilhagem ganhava tons jocosos, um gozo sádico, com Paulo e Júlio passando vez ou outra pela sala com roupas do casal colocadas por cima do corpo, gargalhando, bebendo as cervejas que restavam na geladeira e jogando qualquer coisa de valor em duas malas. Dois relógios, a caixa de correntinhas da mãe de Fátima, um maço de dinheiro encontrado no colchão, a máquina. Nem as parangas que wesley guardou lá em cima do guarda roupa ficou pra trás.

Enquanto arrancava os cabos detrás da Televisão na sala, num lampejo de revolta Fátima comentou, ácida e amarga:
- Cês são uns covardes do caralho... com minha filha aqui no meio de tudo, roubando minha casa, polícia é essa bosta mesmo.

Wesley arregalou os olhos, olhou pros lados e viu os três homens, cada um em um canto, da sala. Paulo, ajoelhado, com cigarro na boca e as mãos atrás da TV, sorriu:
- Haha.... E cê acha que só isso paga o valor? Pfff.... - comentou, enquanto continuava a tirar a TV, o sistema de som e os eletrônicos, um após o outro.

Fátima percebeu que no batente da cozinha um homem estava encostado, olhando a situação. Era Júlio. Enquanto o chefe tocava o saque, ele mordia os lábios, coçava a cabeça, olhava pros lados e, vez ou outra pra Matias, de costas, fumando um cigarro na janela do quarto ao lado.

Wesley percebeu algo estranho e, antes que pudesse falar algo, Matias, decidido, seguiu para o sofá. Seus olhos arregalaram.

- É Paulão, 25 conto é coisa. Que cê acha da gente dividir meia horinha, cada? Dá pra pagar pelo menos a visita. Umas 3 ou 4 vezes, mais esses móveis e tá tudo pago.

 Paulo sorriu, mas ignorou, continuando a organizar a mala e vasculhar a sala.

Júlio, então, de um salto, caiu ao lado de Fátima e ao seu lado, balbuciou alguma coisa, olhou para Wesley e disse:
- Vai senhora, manda essa menina pro quarto. Alguém aqui vai ter de aguentar o tranco nessa família.

Tudo ficou vermelho. Desa vez, Wesley não pensou nas alternativas. Era como um ponto final. Um basta. Em algum momento, em algum lugar, ele sabia que chegaria esse momento. Não imaginou que seria nessa situação, nesse lugar, nesse momento. Todos os músculos de Wesley gritaram um grito ancestral. Fugir ou correr. Por tantas vezes fugiu, mas agora parecia inescapável, tudo lhe levava a agir.

No sofá, Fátima olhava rigidamente assustada, colocando sua filha detrás de si, enquanto Júlio virou-se para ela e começou a se aproximar. Uma mão de distância no sofá, um braço de distância, até que suas mãos empurraram a filha para o chão e Júlio tocou-lhe os seios. Um berro saltou sua garganta e a filha, caída ao chão, gritou.
Paulo parou por um instante e correu até a criança:
- Não berra, caralho! – tapando sua boca.

Tudo pareceu muito lento para Wesley, transcorrendo como um filme. Sua reação, um comando de agir, pular em Júlio, esganá-lo com as próprias mãos. Depois deixar ver. O que lhe importava era aquele mero gesto, alcançá-lo, reagir.

Em um pulo ficou de pé, o que atraiu o olhar imediato de Júlio. Paulo, segurando a boca da criança, também virou, ambos mirando atentamente a decisão do rapaz. Tudo se passou em frações de segundo. A cada uma delas, o corpo de Wesley se aquecia. Sentia o braço enrijecer, o calor subir seu peito, o frio tomar a barriga, suas pernas endurecendo fazendo seu passo seguir. Antes de completar o primeiro passo, alguma coisa estranha, súbita, avassaladora, começou a lhe ocorrer. Uma pontada forte no peito, seguida do turvar de sua visão. Sua boca seca começou a formigar. Esboçou um berro mas, tudo que sentiu foi o ar saindo de seu peito e, estranhamente, começava a sentir que se abaixava. Como dissemos, tudo pareceu demorar demais. Foi saindo dos olhos de Júlio, olhando seu peito, os joelhos, a mesa da sala, até terminar fixo nos olhos vidrados de Fátima...
“Socorr....-----"

E então tudo ficou preto.

Wesley abriu seus olhos e estava deitado em uma cama macia, com um cobertor marrom por cima e um travesseiro que parecia ser o seu. Era dia, novamente.
Aos poucos foi recobrando a consciência e percebendo que estava em seu próprio quarto. Num susto gritou “NEGA!!!”.

A porta do quarto abriu abrupta e por ela entrou Anderson, seu irmão caçula.

- Calma Wes, nóis tamo aqui. Tá tudo bem agora.
- O que aconteceu? Cadê a Fátima? Os cara tavam abusando dela mano!
- Calma mano, segura. Ela tá na casa da mãe com a menina. Você tá dormindo há dois dias. Espera aí, que nós vamos pegar um negócio pra você comer.

Wesley se sentia deslocado. Não lembrava de mais nada depois do apagar e, pra ser sincero, não sabia porque apagou. Durante os poucos minutos que seu irmão levou para trazer alguma coisa, fantasiou o que poderia ter acontecido. Imaginou que sua decisão de ir pra cima de Júlio foi respondida com a agressão que lhe fez apagar. Imaginou que havia mordido a garganta dele, surrado o vagabundo até a vizinhança chamar os meninos ou a polícia e, como estava num frenesi, pode ser que não lembre de tudo. Tentou forçar na mente, mas a única imagem que lhe vinha era a de terror de Fátima sendo agarrada.

- Os caras vazaram mano. Pelo que a Fátima falou, na hora que um dos lixos tentou coisas ela, começou uma treta entre eles. O cara que tava no quarto parece que viu a cena foi pra cima. Enfiou o cigarro no olho do outro e começaram a rolar no chão da sala. Nisso o tal do Paulo entrou no meio e só conseguiram parar ele quando deu um tiro na perna de um dos malucos.
- Qual?
- O que tava tretando com o Jack. Ela falou que você ficou o tempo inteiro sentado, porra! Os caras tavam abusando da sua filha e mulher, mano. Ela falou que você levantou e ela achou que ia fazer alguma coisa, mas do nada desmaiou e ficou lá, que nem barata morta, no meio dos dois rolando.
- .... mas como eles saíram fora?
- Depois do tiro, a vizinhança toda veio correndo pra porta e eles saíram. O Paulo carregou o maluco do tiro até o carro e o outro saiu correndo a pé, xingando e  com a cara sangrando.
- Caralho, mano... me desculpa...

- Essa fita cê vai ter de resolver com a Fátima, Wes. Pra que pegar dinheiro com meganha, porra? Cê tá precisando de algum auxílio, a gente dá um jeito, mano. Era pra droga? Que porra é essa? Você já ficou indo lá no caps toda aquela cota.. vai voltar pra isso?

- E outra, eles voltaram ontem aqui na porta. A gente decidiu pegar um cano com o Totó e ficar no aguarde. Esse jack é cabo da polícia, mano. Maluco colou aqui, com um tampão no olho. Ficou do outro lado da calçada, fitando a gente, esperando. Depois vazou. A mãe falou que viu ele na porta da escola da menina também. Essa semana ela vai ficar e casa....

Anderson continuou falando mais algumas coisas até perceber que Wesley tinha voltado a apagar. Alguma coisa estava se operando naquele homem.

Mais um dia e ele estava de pé, mas já não era o mesmo.
Aquele jeito solto, mesmo que medroso desde cedo, tinha dado lugar a um outro cara. A vigilância da família continuou, mas Wesley não parecia se interessar muito.
Após 3 dias do ocorrido falou com a mãe para ver as meninas. Se fechou num quarto com as duas e, pelo que a mãe viu, saiu de cabeça baixa, olhar distante, parecendo querer chorar, mas sem muita lágrima.

Pela porta, Fátima de relance comentou baixo, como se falasse a filha e a si mesma, esperando a mãe ouvir, “acabou...”

Não se sabe bem o que se passou antes disso tudo, mas o episódio foi suficientemente marcante para ela decidir que não podia mais ficar.
Acreditava que já era difícil demais se defender da Vida estando a dois. Sozinha não podia aguentar. Um mês depois de tudo, pegou a filha, um saco de roupas e voltou ao Ceará pra casa do Pai.

Nesse mês, Wesley não parecia se importar muito.
Acordava cedo, fazia o café, ia para a loja e, quando se esperava que voltasse, não retornava. Frequentemente voltava 5 ou 6 horas depois do horário de costume.

Anderson, que sempre passava pela porta de sua casa a noite as vezes o via, chamava e recebia um aceno cansado, seguido da porta fechada. Isso ou o observava cambaleando até a entrada.

Após a partida, tudo ficou mais drástico.
Os episódios começaram caricaturescos. Dona Lúcia contava como, certa madrugada ouva estrondos na parede da casa vizinha, a de Wesley. Levantava-se e, de frente a janela, via o rapaz nu, de olhos estatelados, caminhando pra um lado e pro outro, até chegar ao portão de ferro e, aparentemente, se tocar do que estava fazendo. Os episódios se repetiam com regularidade.

Preocupado, Anderson passou no trabalho e perguntou sobre o irmão.

- Ele tá bem mais quieto mesmo. Ficamos sabendo do que aconteceu. Céloko. Esses vermes fodem com a cabeça de qualquer um. Era um menino falador, até meio folgado, mas agora ele tá estranho, cheio de tique. Outro dia o Jeremias chamou a atenção dele, por que tava falando sozinho que nem maluco. Ele demorou uns segundos até perceber que tava tomando bronca. Tipo no mundo da lua, sabe?

Nesse dia, alguns meses depois de todo ocorrido, alguma coisa tocou Anderson e o fez pensar no irmão.
Achava que o papo da dívida já tinha miado, mas não podia deixar ele ali, largado, depois de perder a vida toda por causa desses vermes. Tentou sair mais cedo do trabalho, mas sua própria filha ficou doente e teve de levá-la ao hospital do bairro.

Wesley não contou, mas, uns dois meses depois da partida das meninas, ele voltou a frequentar o Caps.
Tinha tido algumas recaídas e precisava de ajuda pra largar de novo a pedra.
Não era só isso. Ele estava vendo algumas coisas estranhas, também.

Não conseguia tirar da cabeça o sorriso de Júlio e aquela cena dele mesmo, de costas numa cama, sem conseguir se mexer. Por meses, pelo menos uma vez por semana, acordava com essas imagens em sua cabeça de madrugada, suando ou as vezes pelado, de frente pro portão da própria casa. Havia contado tudo isso para os assistentes e médicos e estava tomando três comprimidos por dia, um pra dormir e outros pra “pensar mais devagar”, como o médico tinha lhe dito.

Nesse dia, no entanto, saiu do CAPS e decidiu tomar uma dose.
Melhor uma Ypioca do que uma pedrada, pensou. Se esqueceu que tinha tomado o comprimido. Ali, no canto do balcão do bar, começou a sentir uma certa náusea e abaixou a cabeça, pra tentar fazer tudo parar de girar.

Não muito tempo depois, sentiu um tapa e levantou a cabeça devagar para olhar. Um rosto familiar, exceto pelo olho branco, cego. Percebeu que era Júlio e seu sorriso amarelo, sinistro, sádico, asqueroso.

- É isso aí, pilantrinha. Essa semana vim mais cedo... meio que pra agradecer por cumprir nosso trato. O Paulo disse que agora, se você quiser, tem crédito com ele, já que pagou tudo certinho Hahaha.
- Eu...paguei tudo ontem, fiz um pix pra ele...
- Tô sabendo. Bom, negócios, negócios, prazeres a parte, né mesmo? Tá avisado... se precisar, estamos à DISPOSIÇÃO.
- E ah... mesmo os prazeres estando a parte – disse enquanto se virava e caminhava para a porta do bar, se você botar pra jogo aquela vadia, eu consigo até ampliar a margem pra você, tô no ramo agora hahaha... ô teta gostosa, viu...

A feição envelhecida de Wesley se torceu. Aquele sentimento familiar retornava... Peito quente, barriga fria, mãos rígidas, o coração batendo.

Wesley levantou. Viu seu punho se fechar e, num piscar de olhos, acertar a cabeça do homem. Dali em diante o frenesi se instalou.
Sentia os dedos batendo em superfícies duras, sua cabeça ser golpeada uma, duas, três vezes, mas sem conseguir ver nada claramente.

Um tom avermelhado tomava sua vista e, por detrás do véu escarlate, aquele sorriso, o sorriso maldito, um sorriso que queria apagar com tanto ódio que sentiu sua mandíbula se fechar. Mordia e rasgava, sentindo algum líquido, não sabia se seu ou dele, escorrendo abundante pela boca. Conseguia apenas ouvir gritos, de início indistinguíveis, como grunhidos, até tornarem-se um pouco mais reconhecíveis, baixos, disformes “Paraaaa, cê tá maluco,, cê vai mat---“.  

Com sua boca sentiu puxar alguma coisa e, entre pancadas e tropeços, senta um prazer indescritível.
Parecia livre, finalmente. Agiu e, na ação, sentia-se pleno, de forma tão jubilosa que a visão turva e avermelhada e seu corpo rígido e endurecido foram mudando e tomando a forma de um choro copioso. Desabou e então tudo se tornou escuro. Escuro e úmido. Sentiu um cansaço gigantesco. Seu corpo pesou, seus braços caíram e as lágrimas verteram dos olhos, lavaram a pele, escorreram pelo peito...

Até que as vozes voltaram mais agudas, imperativas. Abriu os olhos e olhou para suas mãos. Seus dedos estavam tortos. Sua boca continha um gosto forte de metal, cheia de líquido. Percebeu que era sangue. Tentou enxugar os olhos, mas a vista embaçou. Olhou para o balcão a sua frente. Não parecia o do bar, mas era um balcão.
Nele, apenas uma cabeça, aquela cabeça maldita, aquele sorriso perverso olhando para ele, sorrindo, ou mesmo rindo, numa cena grotesca. Agiu novamente. Seus braços não tinham força e começou a sentir a dor lancinante dos dedos.
 
Só lhe restava a própria cabeça. Fechou os olhos e golpeou com toda a força. Sentiu o estrondo e levantou novamente. Com um olho entreaberto, viu novamente aquele sorriso. Um segundo golpe, mais feroz. Sentiu que abrira algo em sua testa. Agora tinha esmagado aquele PM desgraçado! Tinha batido muito forte! Só faltava confirmar.

Cerrou os dentes e numa fúria primitiva percebeu que não estava sentindo nada e, portanto, não deixaria mais aquele sorriso dominar sua mente. Lançou o terceiro golpe mas, antes de acertar, seu corpo foi arremessado para o lado.
 
Em meio ao caos, sorria e gargalhava. Quando conseguiu entreabrir um dos olhos, viu que não havia mais nada na bancada, apenas uma poça de sangue e uns pedaços estranhos de algo que parecia carne. Devia ser da cabeça do meganha.

- Animal, filho da puta, esmaguei ele! Viu Fá, esmaguei esse filho da puta! Cê tá vendo o papai lice???!!

A próxima coisa que sentiu foi seu corpo pressionado contra o chão e uma picada forte em sua perna direita. Enquanto berrava sua vitória, Wesley se debatia e olhava para os cantos da sala, mas não parecia ver nada.

Não percebeu os 4 enfermeiros em cima do seu corpo.  Nem a atendente que parecia ter as mandíbulas seguradas pela mão. Estava chorando e não conseguia falar direito.
Uma mulher de jaleco, parecia uma médica e, com a seringa nas mãos, tinha uma expressão incrédula enquanto ligava para alguém. Os GCM’s, então entraram, rendendo o rapaz.

A gritaria foi tomando a forma de murmúrio. Os batimentos foram diminuindo. A tensão se dissipando e, enquanto adormecia pelo efeito do anestésico, com o sangue escorrendo pela deformação em sua testa brotava em sua feição um sorriso estranho, vidrado, vibrante e fixo. Adormeceu com aquela expressão.

Do outro lado da rua, Júlio estava parado. Olhava preocupado para os lados, até que viu a viatura da PM se aproximar e acenou. O carro parou, se cumprimentaram, bateram continência e Júlio deu uma roçada pra baixo e pra cima no peito com os metacarpos da mão direita.

Uma testa franziu.
Num movimento rápido Júlio estendeu a mão para o fardado e... sorriu.
E assim, aquele mesmo sorriso perverso, como num espelho, viu-se.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

A luta pelo Fim da jornada 6X1: Uma janela de oportunidade histórica.


Ressoa o alerta vermelho nos bastidores obscuros e salões empresariais que decidem o ritmo e forma da vida política nacional.

Em meio ao intenso debate e a, sintomaticamente, servil disposição do Governo Lula com relação ao corte de gastos federais, supostamente necessário para honrar o famigerado “Arcabouço Fiscal” (entenda “disciplina no pagamento da dívida pública aos rentistas), começa a eclodir um fantasma temível nas redes sociais brasileiras.

Diante de um consistente e crescentemente popular trabalho de agitação pelo fim da jornada de trabalho “6X1”, volta ao centro da cena nacional a luta mais característica do que realmente importa em nossa sociedade de classes: a disputa pela jornada de trabalho, ou seja, pelo tempo de trabalho necessário e o trampo de trabalho excedente (aquele tomado pelo patrão e pelo qual não se paga nada).

Não tardará para que os profetas contemporâneos da velhaca cantiga do fim da história venham acusar de anacronismo e “marxismo cultural” a proposta de redução que, no projeto atual, prevê-se que não apenas impeça a imoral escala 6x1, mas permita a instauração da escala 4x3.

Por ora, soam desajeitadas e danosas para as figuras de uma direita populista, fisiológica ou bolsonarista, ambas recentemente fortalecidas eleitoralmente, as tentativas de desqualificação da pauta.

Soa mal a acidez ansiosa contra o projeto para uma população cuja realidade é a de quase 40% de trabalhadores informais precários e que, quando formais, tem tido sua vitalidade básica cotidianamente sugada pelas comorbidades físicas e mentais adquiridas num modelo de trabalho que esgota, adoece e mata.

Enquanto vociferam contra a bandeira da redução chacoalhando o espantalho de que o país vai quebrar, as empresas não vão mais produzir, os investidores da entidade “O MERCADO” vão sair do país e levar seus dólares, a direita populista em geral tem demonstrado em praça pública, logo após um resultado eleitoral muitíssimo favorável, que é o que sempre foi: testa de ferro e representante leal e canino dos empresários e rentistas, ou seja, da burguesia brasileira e seus interesses estrangeiros associados.
E é aqui que se apresenta a situação mais importante dos últimos anos e, com certeza, das últimas décadas para uma esquerda efetivamente comprometida com os trabalhadores e que busca seriamente se unir e dar expressão a sua luta.

Após eleições municipais sofríveis para o campo da (mal) chamada esquerda progressista, em que a direita bolsonarista e fisiológica impôs derrotas sérias na maioria das capitais e cidades médias, inclusive na joia da coroa, São Paulo, a classe trabalhadora demonstra de forma cada vez mais abrangente e consciente que anseia e está disposta a lutar pela melhoria de suas condições de vida e seus interesses seguem ao redor de sua luta histórica de classes.

É um golpe mortal que a realidade impõe à natimorta teoria do “Pobre de direita”, recentemente revivida por Jessé de Souza, de braços dados com a recalcada noção de uma “classe média fascista”, tal como exposta, a grosso modo, por Marilena Chauí.

Aqui, nessa interessante quadra histórica, o peão brasileiro do século 21 demonstra que sua consciência não flutua ao redor de abstrações e promessas metafísicas, tal como se fosse um estúpido trabalhando ativamente contra si mesmo, um escravo
voluntário. É supérfluo ter de negar que isso possa acontecer. É claro que há exceções.

No entanto, em geral, o trabalhador tem demonstrado e demonstra na atual onda pela redução da jornada nas redes sociais que luta para diminuir sua exploração, pela melhoria da sua condição material, por mais do seu tempo a sua disposição, por uma maior parcela do progresso social em seu favor.

Ao fazê-lo, talvez se apresente para os socialistas e revolucionários, ainda que poucos, uma oportunidade histórica única, uma janela que permite que seja formada um movimento de potencial transformador para décadas no futuro.

A dificuldade dos populistas de direita, por si só paradigmática, demonstra uma das enormes oportunidades que se abrem com o avanço dessa proposta: uma aliança ampla entre a quase totalidade da classe trabalhadora e camadas amplas das classes médias urbanas e mesmo de setores da pequena burguesia. A repercussão cada vez mais explosiva da campanha nas redes sociais é um nítido sinal desse caso.

Ironias típicas da história se apresentam comumente assim. É próprio de sua natureza dialética e contraditória. Após uma derrota eleitoral gritante da dita esquerda, os mesmos trabalhadores que colocaram a extrema direita e fisiológicos nas prefeituras, demonstram que não se integram a ela, mas defendem seus interesses contra os interesses de seus mandantes, pegos nus em praça pública como fantoches do empresariado.

Ainda mais importante para os embates futuros é a possibilidade de enormes avanços de consciência e percepção, num sentido revolucionário, que podem alcançar gerações inteiras de trabalhadores, desde os estafados por anos de exploração, até os jovens da geração Z, muito mais conectados e que começam a se chocar com a realidade fria e cruel da exploração capitalista. Da luta é que podem surgir novos quadros, lideranças e dirigentes capazes da classe trabalhadora.

O problema da jornada de trabalho remete a luta mais fundamental em uma sociedade de classe, qual seja, a luta pela mais valia, pelo trabalho excedente. Ou seja, ao tocar no problema da jornada, os trabalhadores, mesmo inconscientemente, estão tateando o terreno sensível da joia da coroa do capitalismo: a exploração do trabalho e seu uso como motor da acumulação de riqueza, de Capital, num polo minoritário da sociedade. Assim, estão abrindo caminho em meio a selva da ideologia para entender a razão fundamental da miséria de suas vidas.

O fato de que vivem para trabalhar e trabalham para viver soa, para todas as gerações de trabalhadores, como uma verdade natural e, até certo ponto, inquestionável.
Tal como no caso de todas as transformações profundas, as mudanças se iniciam quando a degeneração, o desânimo e o esgotamento se tornam insuportáveis e fazem a temperatura dos peões atingirem grau explosivo. É esse nosso caso.

Em meio ao combate pela redução da Jornada 6x1, os trabalhadores podem passar a se perguntar porque é que ele é que deve realizar todos os sacrifícios sociais, enquanto recebe apenas o mínimo suficiente para não morrer de fome e vê a opulência gerada por seu trabalho se acumular nas mãos, festas, vernissages e orgias de poucos parasitas.

Pode começar a questionar a natureza das coisas, o caráter inquestionável de um tipo de trabalho extenuante e explorado, dos baixos salários, da ditadura decisória dos chefes e patrões, da própria existência do desemprego.

Daí, não apenas a redução, mas a imposição de uma jornada móvel de horas de trabalho e salários, garantido um mínimo, a depender da disponibilidade de trabalho e do preço dos produtos, para que todos os trabalhadores tenham um emprego digno e sustento, tornam-se ideias concretizáveis, plausíveis e de acordo com seus interesses.

O curso da luta de classes não é linear.
Simplesmente não há garantias de que todas essas conquistas podem se implementar. Sobretudo porque uma sociedade sem desemprego significa uma sociedade planificada e socialista, um estágio superior a essa realidade capitalista de exploração, que depende de montanhas de miseráveis desempregados para manter aterrorizados e dóceis os que trabalham e que devem aceitar baixos salários e humilhações.

O curso dos acontecimentos nesse sentido, entretanto, oferece aos socialistas uma oportunidade única de apresentar seus planos e visões para uma nova sociedade, socialista, que produza o suficiente para todos, distribua igualitariamente a produção, empregue e acolha a todos os que trabalham e que instaure um regime político realmente democrático e renovado, superando essa falsa democracia burguesa baseada na compra e engano do voto pelas balas e bíblias e nas decisões de governo e parlamentares compradas por emendas e jantares.

No caminho se apresentam diversas encruzilhadas.
Se, por um lado, é engraçado vislumbrarmos nulidades históricas da extrema direita do tipo, Kataguiri, Nicolas Ferreira ou Eduardo Bolsonaro, desidratando cada vez mais suas bases por mostrarem que servem as mãos pútridas do Capital, por outro, não devemos esperar que o desarranjo dure muito.

A direita golpista e seus aliados hesitantes midiáticos tem demonstrado flexibilidade suficiente para se adaptarem a situação de impermanência dos humores das classes médias e dos trabalhadores. Essa operação de desvio e manejo começa no desvio de 2013 e segue entre lavas jatos, bolsonaros e tarcísios até hoje.

Olho aberto e avanço em programa e prática, com atos de rua, paralisações de locais de trabalho, cobrança e imposição de posição aos sindicatos pelegos para que se somem e determinação de exigir IMEDIATA APROVAÇÃO DO FIM da Jornada 6x1, são a garantia para impedir que as mentiras, o terrorismo midiático, as ameaças e prováveis atentados contra lideranças contra o movimento ganhem respaldo.

Por outro lado, também espreita o canto da sereia da democracia liberal, justamente o embrulho desse pacote de excrementos que é a sociedade capitalista, contra o qual os trabalhadores já demonstraram se colocar, seja no índice recorde de abstenções nas eleições municipais, seja na tomada explosiva e crescente de posição em favor da luta contra a 6X1.

Esse canto da sereia, expresso nos posicionamentos de parlamentares do social liberalismo, ou seja, dos capitalistas “do bem”, presentes no atual governo Lula, no PT e em parte expressiva do PSOL, é uma continuidade da perigosa absorção e integração que sofrem pelas regras do jogo da “conciliação” de classes, ou seja, do acordo “de paz” desigual, dissimulado e desleal, mediante o engano, entre os pobres e trabalhadores e os os ricos e exploradores, seus reais beneficiários.

Essa absorção se expressa, além das realidades dessas organizações, nesse caso, em falas de Hilton sobre como o PL pela redução seria apenas uma “provocação” para levar os empresários a sentarem com eles e com “representantes” dos trabalhadores para pactuarem uma nova forma de trabalho.

No mesmo sentido vão as tentativas de conciliar a proposta com um suposto viés técnico baseado na possibilidade de “melhorar a vida dos trabalhadores” enquanto “aumenta e melhora a produtividade e competitividade das empresas”. Restaria perguntar: produtividade para que? E para quem?

Igualmente indignantes são os exemplos de covardia no início de uma luta histórica expressa por representantes desse tipo de esquerda, tentando barganhar com alguma ficção de empresariado esclarecido que a redução seja gradual, um ano a cada ano por cerca de dez anos, como um sinal de boa fé e gentileza que os escravos devem apresentar para a mão que os chicoteia.

Trabalhadores excluídos da vida social, absorvidos pelo cotidiano do trabalho assalariado cada vez mais evidente em seu caráter compulsório e escravizado socialmente, que vivem de aluguel por toda a vida, de salário em salário, sem prazeres ou economias, apinhados nos ônibus e metrôs lotados, nas filas de hospitais, sacrificados como animais pela polícia ou pelas doenças laborais, tem o que a ganhar com a competitividade? Deveriam se preocupar com lucros ou adequações do patrão por que razão? Essas preocupações devem valer mais do que suas necessidades e interesses imediatos?

Essas são as vias para esvaziar as ruas, mentes e corações e inflar a democracia liberal em crise (em todo o planeta), enquadrando as demandas populares, vestindo-as com as cores aceitáveis, suavizando, domesticando e desidratando o ânsia de mudança popular, posando como suposta via de solução das conquistas sociais, quando são, na realidade, sua cova.

Ocorre que, como a “antiga pauta absurda” de sua época (o décimo terceiro salário; ou a jornada de 8 horas; ou o voto ferminino; ou as férias; ou o salário mínimo; ou a reforma agrária; ou a abolição da escravidão) toda grande conquista social (e política, organizativa e ideológica) só vêm como subproduto de uma luta revolucionária, até as últimas consequências, apoiada numa ação decidida e consciente de trabalhadores que sabem pelo que lutam.

Essa ação é chave para a mudança profunda e sustentada da correlação de forças, tirando da defensiva as ideias e práticas de uma esquerda classista e trabalhadora, ao mesmo tempo em que desmascara seus inimigos históricos expressos no famigerado centrão, bolsonarismo e em toda a gangue de fantoches da burguesia brasileira e associada.


Às ruas, aos locais de trabalho, em cada canto do país é preciso lutar e dizer que a luta pela redução da jornada é uma luta pela vida dos trabalhadores e pela transformação de sociedade de misérias! É possível uma vida digna, revolucionada, solidária, coletiva e socialista!

Essa luta é a chave para abrir as portas de uma nova situação para a organização, consciência, condições de vida e luta por transformações profundas pelos trabalhadores.


 

domingo, 9 de janeiro de 2022

A montanha da luta de classes


Durante a maior parte de minha ainda breve vida política consciente vivi numa época rara. 

Na verdade, foi durante sua duração que me formei politicamente, psicologicamente e, é claro, moralmente. 


Essa época, ainda que relativamente frequente nos países centrais de nosso planeta capitalista, nunca foi muito familiar nas terras de onde escrevo. 


Quando Marx escreve sobre os "ciclos industriais", desenrolando-se em fases de prosperiadade seguidas de crises de superprodução causando miséria, já previstos a uma duração, variável, é claro, de cerca de dez anos, ele tratava da única nação em que as relações capitalistas de produção haviam dominado todas as esferas da produção material de forma plena: A Inglaterra. 


No Brasil, ao longo dos últimos, talvez, dois séculos de sua história imperial, republicana e ditatorial, vivenciou algumas destas oscilações cíclicas, com apenas uma diferença fundamental: em poucas, nas fases de prosperidade material (vulgo, acumulação acelerada de capital), houve a linha política de permitir a concessão de uma parte maior do "bolo", em forma de concessões, por menores que fossem, como forma de apaziguar preventivamente a fúria dos explorados. 


Aqui, a marca feita a fogo pelo Capitalismo periférico se demonstra na superexploração desenfreada dos trabalhadores, numa guerra civil maquiada imposta aos pobres pelo Estado dos patrões e pelo estrutural pagamento de salários muito abaixo do valor da força de trabalho (eis aí um salário médio de 1500 reais, enquanto um mínimo para a sobrevivência, calculado pelo DIEESE, deveria ser de 5000 reais).


Minha formação se deu numa dessas épocas em que, apesar de não alterar estas características fundamentais do capitalismo brasileiro, fizeram-se pequenas concessões, consideradas, pela realidade miserável e secular de espoliação, como enormes contribuições à vida e esperança dos pobres e trabalhadores. 


Os anos do PT no poder trouxeram, na esteira do enorme impulso sustentado pelo consumo de comodities chinês (essas coisas como soja, minérios e carne, o carro chefe so papel brasileiro nas cadeias de produção mundial), medidas cujo objetivo eram, além de sustentar o partido no poder, cumprir um papel apaziguador, conduzir as esperanças, angústias e desejos "através dos trilhos e margens da democracia". Buguesa, é claro.


As pessoas desejam. Isto é um fato. E àqueles que mais falta, o desejo vem sob as mais variadas formas e intensidades. 

A classe dominante de nossos tempos, os patrões, sabem disso. 

Efetivamente, a realização de sua razão de viver, acumular mais capital, depende da capacidade de explorar, criar e conduzir estes desejos. Só existe lucro onde há desejo e compra.


O passo de todos os endinheirados, em todos momentos em que a classe oprimida desperta e entende os séculos de sua exploração e sua força potencial ao se unir, foi buscar conduzir esperanças pelos trilhos, domesticados e controlados, do seu regime político, suas instituições, suas leis e seus prazos qur nunca chegam.


Em troca das bolsas familia, do acesso à universidade, de algum incremento no salário mínimo (sempre muito abaixo do minimamente digno), o PT conseguiu imobilizar movimentos e conduzir expectativas para o Estado: tudo dependia de saber esperar o "talento politico" de tal ou qual parlamentar trazer "melhorias a conta gotas".


É exaustiva a discussão sobre o quanto estas concessões eram e poderiam ser efêmeras e provisórias. De 2015 para cá, foram todas varridas do mapa.


A história da luta de classes demonstra que todas melhorias minimamente sérias e duradouras só podem vir como subproduto de uma luta revolucionária, ou seja, uma mudança na correlação de forças entre os peões e os patrões. 


Os níveis da Jornada de trabalho, salários, condições habitacionais, direitos sociais, todos foram conquistados por uma luta contra a exploração do trabalho, ou seja, questionando as RELAÇÕES CAPITALISTAS de produção. 


Evidentemente, em cada um destes combates, que fazem parte de uma guerra civil permanente entre trabalhadores e exploradores, pressupõem-se certo grau de consciência e organização de classe pelos  oprimidos. 


Ainda que este tema nao tenha sido sanado entre as organizações que se consideram "revolucionárias", é evidente que um profundo retrocesso nestes dois pressupostos se impôs, desde esta absorção da luta pela conciliação do PT, dando um mergulho com o impeachment de Dilma e a instauração de um governo tutelado pelos militares, com Bolsonaro como testa de ferro.


Em meio a este cenário desolador, cá me encontro, diante de uma confusão generalizada e a domesticação pelas leis e propriedade burguesas, não apenas por parte da consciência média do trabalhador comum, mas dos grupos da esquerda socialista. 


Afundados no atoleiro das eleições, seguem conduzindo as inúmeras e graves demandas dos explorados, no máximo, para um projeto de lei, uma petição parlamentar ou uma greve engessada por uma prática sindicalista acovardada frente aos tribunais.


Inusitado que frente ao chamado de sua razão de ser, com a proliferação descontrolada da fome, do desemprego, da miséria moral, do obscurantismo, nossos socialistas não compareçam ao encontro da história. 


Sem contribuir com nenhum exemplo em termos de propaganda, de ação direta, de lutas de resistência e defensivas capazes de ensinar e conduzir a organização novas gerações de peões, contra todos estes ataques e a piora abismal da vida, nossos socialistas se converteram no profissional mais tragicômico do espetáculo burguês: o de ouvidoria da exploração capitalista. 


Não há nenhuma referência séria nas ideias ou figuras socialistas e revolucionárias pelos trabalhadores. 

Tornam-se, assim, mais retroalimentados em suas seitas, com vocabulários próprios e esterilidade comum, tudo flutuando em meio ao mar de pequenas disputas de pequenos poderes e pequenos privilégios de pequenas figuras.


Perdida em ações orientadas por interesses de marketing digital, patinando na lacração de classe média e, fundamentalmente, orientada como plataforma de sustentação de carreiras de alpinistas sociais, exploradores egoístas de nichos sociais e parlamentares e sindicalistas acomodados, nossa esquerda socialista se liberaliza à velocidade da luz nesta crise. 

Torna-se a oposição esperada... e inofensiva.


Seu próximo passo é imiscuir-se nos negócios da democracia liberal e, vendendo a mentira adocicada do passado idealizado, tornar-se fiadora da mais nova fórmula de salvação da nação brasileira, essa máquina de matar preto e sugar peão: 

A redentora candidatura de Lula e.... Alckmin!


Por razões de dignidade, recuso-me a listar o inventário de maldades desse senhor, o massacrador do Pinheirinho. 

Sua função óbvia é a de tutelar os gerentes Ptistas e Lula para que "andem na linha" e abandonem qualquer mínima intenção de voltar a fazer concessões ou retroceder em ataques, como a reforma trabalhista.


Basta enunciar essa como a realidade mais provável a retornar ao poder para esclarecer a visão do tamanho de nossa crise.


A frente há uma montanha,  com cada escarpa preenchida de alienação, atraso, carestia de vida, fragmentação, divisão e precarização inéditos das relações de trabalho, jornadas longas e intensas, filas de osso, porções territoriais tomadas pelo crime e igrejas associados ao Estado, necessidades de retomada de sindicatos e criação de outros, em suma,  uma montanha a se escalar para abrir os olhos e levantar as mãos dos peões. 


Entretanto, nossos socialistas amarelados - e mesmo algumas variáveis mais avermelhadas - parecem resignar-se a um papel oscilante, ora como ouvidor, ora como candidato a "gestor humano" de um capitalismo que, por nada, por lucro, certamente levou milhões de trabalhadores brasileiros à morte numa epidemia.


Essa realidade só é possível graças a uma doença crônica da qual sofre nossa esquerda, outrora socialista, cada vez mais liberal: sua composição e infecção pelos interesses e fome arrivista das camadas privilegiadas da classe média e da pequena burguesia, sem nenhum interesse ou capacidade séria de romper com a vida no capitalismo.


Tive dificuldade de perceber os limites dessa esquerda. 

Nos tempos de minha formação, os ritmos eram lentos. 


Sob a proteção das boas condições de vida e relativa paz social dos governos petistas, era possível até ao mais pelego de hoje sustentar um discurso vermelho e radical. Não se fazia, como hoje, balanço de nada ou autocrítica de qualquer coisa. Todas direções se atribuíam o papel de guardiões  das chaves do socialismo.


Hoje, enfeitiçados pelo perfume do prestígio social, figuras como essas, jogam num baú seu passado, já tímido, de críticas e sustentam o desvio da justa indignação popular, das trilhas revolucionárias para as trilhas da "cidadania", assistencialismo e abafamento da consciência de classe.


Que lástima escalar essa montanha quase descalço!


Mas que dádiva poder viver tempos em que as palavras são testadas a ponto de fazer rapidamente cair as máscaras dos pretensos "amigos" do povo.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Cacofonia

 26 de dezembro. 1:30 da manhã.


As luzes da goma já se apagaram. A coroa foi pra cama, a véia pro seu quarto. 

Restam a mim, o pigas e o Cão sentados no escuro da sala. Na TV, meti uma série.

 

Engano pensar que conseguiria me concentrar. 


Lá fora, estrondos de bombas de tamanhos sortidos se engalfinham com o rugido trepidado das motos no grau. 

Um bagulho de tremer parede.


Uma cacofonia eufórica jorrando por quase uma hora na quebrada. 

Dá pra sentir as aceleradas, os batuques, as músicas, todo aquele rugido se chocando entre si, entre ruas, entre as curvas e esquinas apertadas. 


Aos poucos, a cacofonia muda de forma, se condensa e vai ganhando estabilidade, ora num samba na esquina de cima, ora num funk lá no pé do morro... 

Dá até pra ouvir o tecnobrega na Rua do Bailão. Nesse ritmo, a coisa vai até o sol aparecer. 


Pelas ruas, as brigas, xingos, motos e barcas cruzam-se (des)harmonicamente sem parar. 


Acendo o pigas e começo a ouvir o ronco da véia. Conseguiu pegar no sono. Trampou pra porra hoje. Tava uma delícia o rango, aliás. Amanha vou pedir una marmitinha.

Saio pela porta e me debruço pra desbaratinar por uns minutos na sacada lendo as entranhas de asfalto.


Da vista privilegiada, posso ver quase toda a quebrada. Uma parte enorme, de qualquer forma. Um milhão de pessoas enfurnadas neste mosaico de telhados e muros colados? Um pouco mais?


Todo fim do ano é esse movimento, uma espécie de antesala da Festa de Ano Novo, uma verdadeira descarga de energia periférica e popular, após um ano do cão. 

Muitos sofreram e se perderam. E muitos fizeram calados. Natural que em algum momento se façam ouvir.


Não há dúvidas, no entanto, que esses peões tem voz. A cacofonia da periferia é a prova inequívoca disso. 


O dramático é que sejam dispersas, sem sincronia, sem harmonia, numa miscelânea de ruídos potentes, presentes, legítimos, mas, ainda assim, ruídos e, portanto, desorganizados, fáceis de se consumir rapidamente, engolidos num silêncio ou noutros barulhos afins...


Drama mesmo vai ser quando a gente (re)descobrir a potência de falar junto, a beleza e força de cantar em harmonia, sincronizados na voz e no braço.


Apago o pigas e volto pra série. 

Antes de fechar a porta outro nexo se forma em meio aos ruídos. Um louvor começa a se estabelecer na casa da Dulce. 


No andar debaixo do predinho, vejo a janela com cortina vermelha ascender. Ixe... É o Cléber.


Um puta estrondo engole o culto. Uma sinfonia....

Caralho, o Cléber é foda kkkkk


Em pleno natal, o cara calou o louvor com a Internacional!!!


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A lógica das coisas

 



TRIM TRIM TRIM!


Dei um pulo na cadeira. 
Só podia ser aquilo. 

Todas as notificações estão desativadas. Sabe como é, pequenos gestos em benefício da saúde mental. 
Deixei apenas as notificações do E-mail já que precisava de alguma resposta sobre a entrega. 

Aperto o botão lateral, deslizo o dedo formando o desenho de bloqueio sob o sulco esculpido pelo hábito na película judiada e lá está a notificação dos Correios. 

Exatos 70 reais, só de frete, para entregar 4 livros. 
Na "resposta à manifestação", a entidade pretensamente humana, indistinguível de um robô, comunica que meus pacotes estão já há 6 dias esperando a retirada e que a data limite é amanhã. 

Inútil argumentar. Esta já é a terceira reclamação realizada, todas respondidas me enrolando e mandando ir buscar algo pelo que já paguei a entrega.

Reúno a moral carcomida pelos meandros burocráticos e vou até a agência. 
Uma porta daquelas de bar, sanfonada e de aço, dá entrada a uma aglomeração de inconformados, atendidos por dois funcionários, todos displicentemente sem máscara, resmungando, cada um na posição que lhes cabe. 

Já se vão 20 minutos de espera e ainda me restam 30 "usuários" para terminar mais este calvário citadino. 

Pelo que posso apurar, é sempre a mesma história. Os Correios não entregam se casa tiver "restrição de envio". "Área de Risco" eles dizem.

A cada nova senha, uma cara feia e resmungos. 
O tom começa a ficar mais alto, as palavras mais ásperas, como se o antagonismo ganhasse pouco a pouco forma no ar. 

Na sala apinhada, um mais exaltado começa a gesticular, bradando sua máscara cirúrgica numa mão e o  RG noutra:
"Toda vez a mesma merda! Vocês falam que vão na nossa casa e não tem ninguém. Porra, eu cuido de um filho cadeirante, quase não saio, vocês nao foram porra nenhuma". 

O pavio é aceso. Diante dos olhos caídos de atendentes estafados do espetáculo que já consideram ter visto vezes demais, a indignação toma outras bocas: "Eles são tudo um bando de folgado, é tudo mentira não levam porque não querem".

O funcionário, como que calejado, assume a defesa da empresa e informa em tom igualmente ríspido indignado: "Senhor, eu mesmo moro 'área de risco'. Vou fazer o que? Não é tudo sobre você. Infelizmente, na sua região existe muito roubo de carga e essas coisas, tem que se habituar...". 

Tudo ali, na minha cara. Dois peões, entreolhando-se com ódio, cada um munido de suas razões, acotovelando suas angústias na fila da miséria de vida amarrada por protocolos e regras burocráticas na maior cidade da América Latina. 
Um grande centro onde peões, em tempos em que bilionários enviam conversíveis para Marte, não conseguem receber um pacote.

Sem tardar, o convidado de honra deste encontro tragicômico se apresenta: "Tem que privatizar essa porra! Vai ver se o mercado livre faz isso aí?!!". 

Os números correm tão lentamente quanto crescem e se acunulam em mim e noutros aquele calor, aquela boca seca, aqueles repetidos "tsc" de insatisfacao e as rosnadas de impaciência. 

Você já viu um ser humano rosnando? É um fenômeno muito particular. Uma expressão de amargor e raiva como que escorrendo da etiqueta social, pouco a pouco, ficando cada vez mais alto e evidente, mesclando-se com as progressivamente enrugadas marcas no rosto de quem desejaria jogar tudo pro espaço. 
O rosnado humano é um grito amordaçado que se dá contra a hipocrisia e desperdício de energia social.

Enfim, chega minha vez. Número 567. Passo veloz por entre os perdigotos esvoaçantes lançados pelas pessoas acumuladas na entrada e chego com meu código explicando o ocorrido. 

Imediatamente, o funcionário se interpõe como uma muralha: "Papel da senha, por favor". Tão rapido quanto o arregalar dos olhos foi o apalpar de meus bolsos com a mão. 
Em vão: "Pouts, cara... Deve ter caído no chão... Mas o problema é es-"
"Se não tem o papel da senha, tenho de chamar o próximo", diz o autômato tocando o painel e chamando a próxima senha. 

Por um instante me sinto flutuar. 

Visualizo toda a agência ao meu redor girando e girando até tomar a forma de uma vertigem que, de súbito, se transforma numa outra sala, destroçada, com montanhas de caixas rasgadas e envelopes salpicados pelo chão. 

Ao redor uma orgia de indignados arregaçam os bancos, depredam vidraças, urinam nos caixas. 
Alguns, mais animados, sobem triunfantes nos carros de entrega e pulam freneticamente em sua lataria; outros, num ato de criatividade destrutiva, pixam R no lugar do X de SEDE(R)X, lançam bolos de cartas rasgadas nos funcionários que correm semidespidos de olhos arregalados; os gritos, o ódio, a raiva explodem num frenesi sem freio. 

Repentinamente me vem ao ouvido:
"Moço, tava aqui no chão da entrada", diz um rapaz de olhos caídos, postura cansada, uniforme do supermercado, entregando minha senha em mãos. 

Sorrio a ele e entrego, já sem sorriso, a senha ao caixa, explicando o problema dos pacotes e reclamando que nunca fazem a entrega. A resposta é padrão: "Você mora em área de risco". 

Contraponho, como um Quixote da sensatez, talvez pensando que ali a Razão tenha alguna soberania, que o carteiro passa toda semana e que inclusive já recebi alguns livros. Tão mais injusto me cobrarem três vezes, pelo frete, pela passagem de ônibus e pelo tempo perdido. 

Ledo engano.... Neste tipo de repartição, não há espaço para idealismos tão pueris quanto os da Lógica. 

O caixa, soçobrando minhas esperanças, abaixa o óculos até quase a ponta do nariz e me responde em tom baixo, quase provocativo, em meio à balbúrdia que se acumula nos caixas ao lado:
"Eu sei que é difícil pra quem não trabalha nos Correios entender...Mas uma coisa são os carteiros de Rua, outra são as encomendas. Nas áreas de risco, não entregamos mesmo."

"E o Frete de cada um dos livros que paguei? É injusto eu sequer receber.", replico, ingênuo, ainda abraçado à Lógica e algum senso de justiça.

"O frete não é só entregar, né? É TODO um processo... Veja, a gente as vezes não sabe, mas tem muito roubo de carga nestes bairros. E nâo é só nesse seu CEP não viu...? É na Vila Olimpia, Jardins, Butantã..." replica, como que tentando explicar a imparcialidade social da suposta regra. 

Respondo, já sem paciência: "Lá onde moro não tem isso não cara... Se fosse assim, outras empresas não entregavam compras, o carteiro não iria... Moro há 18 anos e nunca vi isso lá. Isso é preconceito!"

Esbugalhando os olhos e fazendo erguer um sorriso de soslaio, o caixa lança uma tréplica, meio que demarcando o fim da história: "Ah, tem sim! Você é que não sabe."

É engraçado o efeito psicológico que uma posição burocrática proporciona a um indivíduo. 
O sujeito nunca me viu na vida, mas julga saber melhor quais são meus direitos e a realidade de onde vivo, atribuído da onisciência proporcionada por um código numérico e uma etiqueta no site de sua empresa a um palmo de seu nariz. 

Até pensei em mencionar o fato de que no cruzamento da rua onde vivo ficam duas biqueiras, cheias de vapores e gerentes, visitada 24 horas por dia por clientes e, claro, a fiscalização informal do Estado em forma de propina. 

Achei que se falasse isso obteria o triunfo dessa presença já maltrapilha na conversa - a Lógica -, pois não existe nenhum traficante que vá querer atrair problemas pro seu comércio, proporcionados por roubos de carga na mesma rua. Mas eu aprendo. Sei decretar o fim de propósito quando o vejo em uma conversa.

Deixo a bola rolar. 
Um senhor de idade vem e coloca o RG na boca do Guichê, falando que seu número havia passado e não tinha sido chamado. O Caixa muda sua expressão gelatinosa para uma feição enrugada de nervosismo: 
"Chamamos sim! O senhor é que não prestou atenção. Espera aí que já atendo".

Antes mesmo que o velho, a essa altura com os olhos arregalados, pudesse responder, nosso atendente olha para o lado e comenta com seu colega: "O problema é isso... todo mundo quer ter razão, direitos, mas nenhum dever..".

Tento replicar com um "Po cara, ele é um senhor de ida-" e vejo a última sílaba mergulhar no vazio que se abre no espaço  que o caixa ocupava na cadeira. 
Com seu sorriso de soslaio, o sacripanta pega a lista que lhe dei e sai para uma sala ao lado, parecida com um depósito.

Lá, entre o burburinho, consigo ouvir alguns comentários com um terceiro interlocutor.

"- Tá foda hoje, ein? Puta que pariu, cheio de Véio e desse 'povinho'.
- Ah, chega essa hora na segunda e é sempre assim...
- Que que esse véio queria?
- Ah, tava babando na cadeira e perdeu a senha. Deve estar querendo pegar uma muamba qualquer.
- E esse cara ai conversando tanto?
- Ah, outro ignorante de merda... Mora na porra da favela e quer pacotinho na porta de casa. Livro ainda... Deve estar comprando essas apostilas de supletivo ou 50 tons de cinza pra alguma velha na casa dele..." Caem os dois em gargalhada,  emanando estranhamente do depósito para a sala tomada de expressões carrancudas.

Por alguns instantes o "ignorante de merda" fica repetindo em minha cabeça. A lógica, essa peralta ingênua, reivindica mais uma vez seu lugar. 

De que adiantaria, no entanto, mencionar que os livros se tratam da compilação das matérias da Gazeta Renana, de Marx e Engels? Ou que também abarcam a fenomenologia do Espírito, de Hegel, além de Dawkins, Ursula K le Guin, Rosa, etc? 

Peço paciência a nossa peralta e espero o retorno dos pacotes. 
Afinal, que lógica há em tentar convencer outro peão, que pelo simples fato de ser concursado e sentar num caixa, é engolido pela ideologia patronal e se considera superior, sequer reconhecendo a discriminação de classe evidente e cristalizada na absurda determinação de uma região periférica como "Área de risco"?

Antes de voltar, na transição entre as salas, o caixa vira pro interlocutor e diz "E aquele PDV lá, cara? Olha, se virar, eu to saindo fora.... Quero é trabalhar pra mim mesmo!", respondido por um efusivo "Aí é vida!", do terceiro.

De volta, me entrega 3 pacotes e informa que terei de retornar depois para pegar o quarto, que ainda não chegou. O quinto, segundo me informa, ficou 8 dias na agência e hoje, antes do fim da data limite, foi devolvido ao remetente.

"PUTA QUE PARIU", talvez eu tenha dito em voz alta. Não importa. Mal pego os livros e nosso caixa já chama a próxima senha, sem sequer olhar-me nos olhos ou balbuciar um gesto humano no fim da transação. 

Enquanto saio, o "Ignorante de merda" continua ressoando em minha cabeça. 
No entanto, pensando bem, me vem um estalo de epifania. 

Talvez esse imbecil tenha me dado uma boa ideia. 
Enfim, encontrei um bom uso praquela bosta molhada que os gatos, ratos, cães e sabe-se lá o que mais distribuem regularmente na porra da minha escada. 

Bato um fio pro Cléber. Ele estava fazendo uns corres de prestação de serviço de contagem de patrimônio. Acho que é MEI. Peço seu endereço e dados pra enviar pro antigo endereço do Juca, que não mora lá  nem vai buscar nada. Cadastro meu e-mail alternativo pra rastrear.

Encho um pacote com variedades fétidas sortidas de cores, formatos, texturas e origens diferentes. Furo minuciosamente com agulhas toda a extensão do plástico e embrulho no papelão. Na capa, a designação "Aditivo agrícola natural" pra não dar pala. Encaminho pelos correios.

Já faz 4 dias.

TRIM TRIM TRIM

Recebo uma notificação: "Favor retirar sua entrega no endereço solicitado em até 4 dias úteis. Motivo: destinatário ausente/área de risco".

Ainda estou me decidindo se daqui a 4 dias volto lá, só pra ver a cara de nossos colegas ou se deixo a merda refazer todo seu percurso lógico.


quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A fresta

 



Eu nunca fui o melhor em alguma coisa

Deitei a cabeça no travesseiro e me indaguei incisivo. Digo eu porque, afinal, acredito que o que me vem à cabeça, ainda mais a essas horas da noite, só pode ter esta origem.

E é daí que se inicia o trajeto da insônia.

Eu achava bobagem aquelas cenas clichês de filmes e séries, em que o sujeito se debate na cama absorvido pelas sinuosas curvas de pensamento caótico, sempre no momento mais inoportuno do sono, revirando fatos do passado, ideias do futuro e angústias do presente. Eu também nunca dei muita bola pra esse papo de saúde mental. Afinal, somos criados para lidar com o externo.

A rigor, somos criados para sermos um apêndice da vida exterior, como ferramentas úteis que devem se segurar como puderem a um fio de saúde física e todo o resto se trata com o bom e velho “tem de aguentar”.

É curioso como, tantas vezes, me deparei com situações absolutamente elucidativas sobre o que é uma crise do pânico, um transtorno de ansiedade, gente borderline e toda essa sopa de letras sortidas que o capitalismo disponibilizou para nossa geração. Uma riqueza de transtornos, um mostruário de monstruosidades, toda essa parafernália que acomete os adoecidos são o subproduto histórico-social de uma vida expropriada, sugada de sentido, para nove décimos dos pobres diabos como eu.

Ainda assim, tudo me parecia apenas algo mais do que uma frouxidão moral, uma fraqueza de gente sem sorte. Isso, até eu ter a minha primeira crise de pânico.

Voltemos à insônia, no entanto.

Percorri escrupulosamente os cantos da minha vida em busca de confirmação ou refutação de afirmação tão taxativa.

Lembro bem da adolescência. Nunca tive o cabelo mais bonito. Ainda que tivesse um sorriso cativante e um porte um pouco acima da média, não podia competir com o cartel de oferecimentos da turma dos “populares”. Todas as pequenas características físicas e morais que pudessem me conferir algum destaque em uma época tão crítica e em que impera tão fortemente a crueldade, como a adolescência, eram contrabalanceadas pelo sobrenome pomposo, pela total 90 da Nike, os rolezinhos semanais no shopping e a noção de Status que a Bárbara poderia ter indo ao cinema com o filho do dono da papelaria.

O jovem da periferia ou, como alguns falavam em tom condescendente, “classe média baixa”, era algo entre o exótico e aquilo que deve ser evitado. Desnecessário dizer que, em se tratando de relações, esta não foi a melhor época para mim.

Nunca tirei as melhores notas, é verdade. História, Geografia, Sociologia, Português e Redação me encantavam, apesar de, nesta busca por identidade, não sugarem decisivamente minhas iniciativas e vontades.


Estava em algum lugar entre os nerds, aos quais atribuo, hoje, o mérito de terem visto com clareza e terem embarcado nos assuntos de seu interesse e os largados, aqueles que por seus motivos não tinham os meios nem se encantavam com nada do que era discutido ali. De conjunto, já é um privilégio ter a possibilidade dessa escolha num país assolado pelo semi-analfabetismo e pelas escolas caindo aos pedaços.

Isso me faz lembrar o futsal. Jogava na pista de taco e de cimento do salão do clube perto de casa. Não tinha nenhum campinho muito próximo e também me dava muita preguiça pensar em correr aquele campo inteiro enorme. Eu gostava de emoções concentradas, preâmbulos rápidos e jogadas ligeiras.


Mesmo ali, nunca fui o destaque. Havia dias em que chutava redondo, acertando até umas boas rebatidas de três-dedos, roubando uma bola na ala esquerda e fazendo um bom cruzamento, chegando a arrancar algum elogio do treinador. Em outros, era como se algo se apossasse de mim de forma que, a cada dificuldade específica, num dia específico, crescesse uma voz no fundo da minha mente, uma voz de uma sombra que escurecia o ambiente, me tirava as forças e sugava minhas possibilidades de fazer bem algo.
Lembro da vez em que fiquei quase 5 minutos tentando acertar um pênalti na fila de cobrança. A cada chutão pro espaço, no meio do gol ou na não do goleiro, um uivo da molecada sugava algo em mim e injetava o veneno que fazia crescer a sombra. A sombra da incerteza e da insegurança, algo muito familiar nos anos vindouros.

Aprendi então que, não sendo capaz de vencer, para ao menos olhar a luminosidade de algum êxito no horizonte, precisaria agir de alguma forma.
Esta foi a época em que era moda zuar a aparência alheia na escola. O nome e o cabelo encaracolado/crespo, é claro, foram alvos preferenciais.

Esmagado pela estrutura social dominante na escola de classe média alta, na qual ocupava o papel de “elemento de atenção”, a busca por identidade e a sombra da incerteza, percebi a fonte de onde poderia erguer minha vontade.

Algo começou a mudar quando, espremido pela sombra e sentado em algum canto escuro e seco, pela primeira vez, percebi uma fresta estranhamente luminosa e estridente, cujo calor dissipava a frieza da incerteza, se abrir, me mostrando uma fonte inesgotável de energia. A raiva foi minha companheira fiel — e segue sendo — durante todos esses anos.

Essa foi, então, minha força motriz. Não me lembro em quantas oportunidades praticamente entrei com bola, zagueiro, goleiro e, às vezes, até juiz, no gol adversário. A vontade passou a ser o mote e a raiva o combustível.

Comecei a concluir que, como forma de ser respeitado, devia pagar o fogo com fogo maior.

Aquela fresta no canto do quarto se tornava cada vez maior e, agora, me permitia até ver um pouco mais daquele espaço, vazio, é verdade, mas que um dia eu poderia mobiliar e decorar, tornando-o um lar que eu gostasse. Não precisaria me preocupar com o calor. Enquanto estivesse aberta aquela fresta, eu veria ao menos parte da minha sala, ficaria aquecido e estaria seguro.
Meti um soco na cara de um folgado; passei o rodo naquele que me chamou de cabeça de Bombril; angariei uma reputação para chamar de minha.


De uma forma estranha, o destaque me encontrou. Eu era o terror da escola. O cara que tirava boas — embora não excelentes — notas, que tocava o terror nas aulas, que não aceitava desaforo e que se defendia e a suas opiniões feito fera. Naqueles dias, parecia que, sugando a commodittie daquela fresta, eu poderia chegar a qualquer lugar.

É fácil perceber que, também, nunca fui o melhor em fazer escolhas.

O quarto estava cada vez mais quente, ainda que, por seu tamanho, a fresta crescente não o iluminasse todo. De início não percebi a contradição. Tentei buscar algum escape que me permitisse modular essa diferença. Tentei as artes marciais.

No judô, era bom. Treinava e dava trabalho para os faixas pretas. No entanto, seja por uma demasiada lentidão dos combates ou na progressão de faixas, rapidamente me entediei quando dos primeiros anos e das muitas quedas tomadas. Fui para o Kung Fu. Lá, não consegui aprender muito, vide que, nestes tempos, a maioria dos estabelecimentos e picaretas que se chamam de mestres apenas aproveitavam um nicho de mercado da classe média com algum capital excedente para gastar para vender um produto que satisfizesse o consumo performático. Novamente, foi inevitável a frustração.

Tentei uma Banda. No início não sabia tocar nada e, sendo honesto, não era o melhor dos cantores. Entretanto, ter sido criado por pai e mãe trabalhadores apaixonados por música e tendo crescido em um ambiente musical, em conjunto com o calor bombeado pela fresta, encontrei aí um caminho possível. Iniciei o violão, compus alguns sons e tive 3 ou 4 bandas até o início da vida adulta. Novamente, por querelas pessoais e pela pressão de decidir o que fazer com o futuro, aquela sala parecia ficar cada vez mais escura, ainda que cada vez mais quente.

Findou-se a escola. Num clima sufocante e escuro, me via diante, novamente, da indecisão. Realizei — um outro eu — uma investigação parecida com a que faço hoje, com muito menos elementos, cicatrizes e experiências. O que vou fazer? Quem sou eu?  Há algo em que eu realmente seja bom?

 

Uma inconstância pulsante durante a vida de jovem adulto, um tipo de insatisfação perene, como algo que falta e não se sabe o que é. De educação física até ciências sociais, de física nuclear a biologia, demorei até chegar a uma definição do que fazer com o já restrito universo aberto pela possibilidade de uma Universidade.

Nela, igualmente, não fui o melhor em quase nada. Por um breve período, imaginei-me o melhor em determinadas matérias, em determinadas atividades, em determinadas lutas. Busquei incessantemente conduzir o calor das frestas pelos canos que moviam meu íntimo e, por certo período, encontrei um equilíbrio. Estava bem, ainda que, estranhamente, aquela sala parecesse ficar cada vez maior e menos iluminada, ao passo em que o calor se tornava mais e mais sufocante.

Na cama, meu corpo já sambava como um ovo na frigideira, de um lado pro outro, como se o incômodo psíquico não pudesse se conter e contagiasse o corpo.

Fechei os olhos novamente. Tentei vasculhar os cantos da sala, em busca de alguma lembrança que me trouxesse alguma confirmação. Percebi que não via nenhum vértice ou parede. O canto havia sumido, embora o calor fosse o mesmo. Olhei para o chão e imediatamente vi a fresta. Nunca a havia olhado diretamente, me contentando com a luz que ela projetava nas paredes e no canto que conhecia. Pensei que, com o tempo, inevitavelmente todos os lados da sala estariam claros, aquecidos e, assim, poderia começar a mobiliar minha morada, do jeito que gostasse, encontrando aquele objeto que me dissesse, só de ver, no que sou melhor. Olhei, no entanto, ao redor e percebi que, agora, eu estava no centro da sala. A fresta aberta, com um centro largo que ia se restringindo nas borda ao redor do círculo, formando rachaduras no chão, fervia com chamas se elevando de um líquido espesso e brilhante, como lava. Não sei como, mas em meio a esta lava, eu via figuras, de uma inspetora, do cara que me chamava de Bombril, de desafetos variados... Vi, de relance, uma foto, daquelas tiradas nas antigas Polaroids, flutuando por cima da massa flamejante. Tomei um susto quando tive a impressão de que me vi. Estendi a mão, num impulso, para pegar e uma chama lancinante me queimou os dedos. Recuei. Voltei a olhar ao redor e, a exceção daquele centro luminoso e quente, a sala parecia não tem cantos, se estendendo indefinidamente para todos os lados até adentrar uma área escura. Fiquei curioso e me afastei um pouco da fresta. Senti a temperatura amenizar-se e, longe da extrema luminosidade, comecei a perceber que naquele escuro salpicavam diversos pequeninos pontos de luz distantes. A sala era muito maior do que eu pensava. Acostumado com o calor da fresta e da segurança que me supria, jamais pensei em olhar ao redor, enquanto a sala crescia. Tudo para mim respousava na expectativa de poder ver e, então, decorar minha sala. Notei que, mesmo um pouco mais distante da fresta e suas chamas, ainda estava quente demais e mesmo o chão mostrava rachaduras que se prolongavam por debaixo de meus pés. Não queria cair ali dentro. Puxei uma poltrona chamuscada e afastei até a borda da luz, muito mais longe do que aquele antigo canto ficava. Senti-me bem, aquecido, mas não muito. Via com muita clareza os tantos pontos de luz diferentes. Pareciam iluminar de cima para baixo diversas superfícies, algumas no mesmo nível que eu, algumas mais baixas, outras vazias, outras ainda pareciam ter pessoas, todas, no entanto, de cores diferentes. Ao lado da chama nunca pude ver isto. Sentei na poltrona que, estranhamente, na penumbra parecia ter perdido seu chamuscar. Ao lado dela, um bloco de notas e uma caneta. Virei de frente para uma daquelas luzes e me pus a imaginar. Cada página do bloco tinha uma seta e cada seta tinha uma cor diferente e apontava para um lado diferente.
Acordei de súbito. Eram 11 horas.