sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Notas sobre o Direito, impeachment e a esquerda brasileira


Lendo a obra, precursora de todo o, hoje, badalado gênero "distópico", Nós, de Zamiatin, frequentemente me pego diante de questões incontornáveis, existenciais e políticas.
A certa altura, o narrador personagem D503 reflete sobre a natureza do Direito para os antigos (o livro se passa milhares de anos no futuro, no Estado Único, onde a população humana está reduzida a 10 milhões, seus membros não tem nomes, mas números e tudo segue uma ordem mecânica e matemática, plenamente controlada). Este mesmo Direito com letras maiúsculas, ou seja, o conjunto de regramentos e formalizações sob os quais, em tese, todos nós e nossa sociedade repousam. Conclui, sagaz e lúcido, que o Direito é uma função do poder, exatamente como o Estado. Mais exatamente uma função do poder de classe.
A ficção "pluralista" de que o Estado e, assim, o Direito são espaços "neutros", disputáveis, se desfaz todos os dias para aqueles que estão na base da sociedade, ou seja, os pobres e trabalhadores.
Sua função fundamental é proteger a ilusão de que existe tal neutralidade, precisamente porque esta é a melhor forma de proteger o que importa: as relações de produção entre os membros dessa sociedade.
O que isto significa? Que sua função fundamental e inescapável é lutar, com a caneta do juiz ou com o cassetete do PM, para garantir que a maioria continue trabalhando, gerando valores e riqueza sociais com este trabalho e que, esta riqueza, continue sendo tomada privadamente, sem pagar nada em troca, pela minoria de magnatas, empresários, capitalistas.
O mecanismo é, portanto, propositalmente complexo, pois no caminho de seu entendimento, com a massa de explorados absorvida pela preocupação em passar o mês e sobreviver alimentar e psicologicamente, é fácil se perder.
Eis a base fundamental que nos permite entender porque, de 2016 para cá, tudo ocorre como ocorre: presidente derrubada sem crime; STF legitima a isto e ao ilegal teto de gastos em saúde e educação; legitimação das reformas trabalhista e da previdência que destroem a vida do trabalhador e o baixam o preço do trabalho (vulgo menos direitos e salários); prisão, na correria, de Lula por ser adversário eleitoral do Bozo; ligações evidentes da família Bolsonaro com milícias e assassinato de Mariele sendo diminuídos e naturalizados.
Isso, então, serve como potente lição a quem quiser aprender e, principalmente, a esquerda dita revolucionária no Brasil (aquela à esquerda do PT).
Como função do poder, as soluções podem vir tão menos da Justiça e do Direito, burguês, patronal, quanto da ocupação dos espaços parlamentares no Estado.
A saída do impeachment e a cômica, embora trágica, indefinição da esquerda brasileira quanto ao que defender na manifestação que organizam para o dia 18 - o mesmo dia do ato chamado por Bolsonaro - corresponde a confusão adquirida pelas compreensões equivocadas e irrealistas sobre tanto o Direito quanto o Estado. E contrapor um movimento organizado nacionalmente sem uma visão clara de pelo que se luta é a melhor forma de perder o embate.
Não podem chamar o impeachment pois o congresso está lotado de bolsonaristas, bíblia, bala e boi. Assim qualquer linha parlamentarista se torna inútil e não mais do que o já comum berreiro e performance midiática dos poucos parlamentares de esquerda.
Por outro lado, separada dos espaços de vida e trabalho da real massa dos trabalhadores, esta esquerda não pode oferecer e convencer de um projeto próprio, de país e de mundo, que são a única força capaz de fazer frente a este neoliberalismo sem amarras que domina o poder no Brasil.
O primeiro passo é perceber o próprio "xeque" em que se encontram as multidões de explorados e a própria esquerda, espremidos entre a selvageria policial, judicial e empresarial capitalista e as traições e ilusões vendidas pelo PTismo.
A greve da Petrobrás não é um detalhe. Neste grande evento da luta de classes os trabalhadores poderiam mostrar seu peso, sua capacidade de controle e o quão grande é o seu poder e ação, que movem a sociedade.
CUT e PT, com apoio de correntes do PSOL, por exemplo, recuaram no momento em que era preciso unificar com outras categorias e desempregados, para transformar isto tudo num enorme conflito de toda a classe contra o absurdo que tem se tornado a vida.
Não fizeram em nome de confiar no TST e, nesta semana mesmo, viram que o máximo que este lhes propôs foi manter as demissões, pagando uma rescisão um pouco maior. Sofrerão, ainda, a demissão de quem foi linha de frente na greve e, assim, mais desmoralização virá para toda a classe.
Do Estado e da Justiça não virá nenhuma mudança. A república de 88 ruiu. O que existe é um regime eleitoral tutelado cinicamente pelos militares e controlado pelos bancos, os que verdadeiramente mandam no baixo e médio empresariado industrial, ruralista e comercial. Isto não é uma democracia.
Num governo do povo não morreriam 170 pessoas em 5 dias de motim miliciano/policial como no Ceará ou como em qualquer movimento de policiais nos últimos anos.A saída é, como no caso do Direito, golpear onde importa: o coração do sistema, as relações de produção e exploração do trabalho.
Por isto, ignorar os 14 milhões de desempregados, os 40 milhões de informais, o potencial unificador e explosivo de greves, como da Petrobrás, em nome de ações parlamentares e eleitorais, pensando que "preencher" o Estado ou o Direito com "gente boa" é suficiente, é puro oportunismo, covardia, cegueira.
O poder do Estado não vem das instituições; o poder do Direito não vêm das palavras e regramentos; o poder da polícia não vem destes dois. Estes poderes emanam das relações de classe, da exploração econômica e, cada vez mais, da inconsciência e alienação da maioria explorada, que é objeto desta dominação.
Organizar e conscientizar, como únicas formas de romper este ciclo, demandam jogar por terra qualquer ilusão no Estado e no Direito. Ambos são ferramentas da classe burguesa, dos 1%, dos capitalistas, chame como quiser. Apenas impondo nossa força, com métodos de força, poderemos destruir estas ferramentas e organizar outras, diretamente, controladas pela maioria trabalhadora.
Só existe futuro, no médio longo prazo, por este caminho. Fora disso, preparem-se para milícias, pestes, explosões de raiva social espontâneas, fome e desmoralização. Felizmente, os povos lutam e seguirão assim.
Chances para o novo existirão.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Greve de petroleiros na encruzilhada

A atual greve dos petroleiros é mais uma encruzilhada histórica, para o PT, para os petroleiros e para todos nós.

Com mais de 20 mil petroleiros parados, numa greve que a própria CUT anuncia como a maior desde 95. Lá, uma greve de 32 dias enfrentava Fernando Henrique e o Neoliberalismo em seu vigor de nascimento no Brasil. Chegando uma década mais tarde por aqui, após o levantamento operário dos anos 80, as forças do neoliberalismo fizeram o que puderam para acabar com esta greve.
Exército ocupando refinarias, multas milionárias contra a FUP (federação petroleira) pelo mesmo TST, enfim, o filme de sempre.
Foi importante para o imaginário popular , no entanto, manter consolidada a ideia do senso estratégico de uma Petrobrás estatal e para questionar o projeto neoliberal "sem amarras".

Cá estamos, em 2020, após a década neoliberal e o respiro social-liberal dos governos PT, ou seja, neoliberalismo com pitadas de socialdemocracia e assistencialismo, de volta a um piorado neoliberalismo sem amarras.

Bolsonaro é o capitão do barco do trabalho precário, do roubo de terras, assassinatos de indígenas, do fim da aposentadoria, da privatização de "tudo o que der", da terceirização total, dos 13 milhões de desempregados e 42 milhões de brasileiros na informalidade. A Petrobrás já possui grandes investimentos internacionais; o pré-sal não é vendido por falta de comprador e não vontade; todos gabinetes estratégicos do Planalto estão nas mãos dos militares; milícias, assassinatos e conspirações tomam conta do cenário do palácio burguês.

De nosso lado, uma greve da Petrobrás poderia ser o catalisador, a faísca, capaz de contagiar milhões de trabalhadores, empregados e desempregados, freando essa ofensiva social dos patrões.
Hoje, na cabeça de qualquer trabalhador consciente e, certamente, dos petroleiros cujo trabalho está ameaçado pelas demissões, soa o alerta: até quando pode durar esta greve? Uma semana? Uns dias? Um mês?
Quem vive de salário é muito concreto. Esta pergunta leva diretamente a outra: qual a estratégia para vencer?

Sob a terra arrasada do mundo do trabalho e a luta desesperada que cada peão tem para fechar o mês, a luta dos petroleiros pode ser um farol.

Não apenas vender gás a 30 reais, uma demonstração forte da capacidade dos trabalhadores de guiarem a luta popular, mas, em primeiro lugar, unificar os terceirizados de todas funções na própria Petrobrás, a greve, atropelando ou não os pelegos que dirigem seus sindicatos.
Poderia se unificar numa mobilização permanente com os caminhoneiros, em primeiro lugar pela libertação de seu líder sindical e pelas reivindicações.

Disto, quantas categorias não poderiam se animar com a luta e unificar suas forças?
Professores do RJ ou SP, humilhados por anos de arrocho salarial e precarização da educação? Correios, uma das maiores e mais antigas empresas prestes a demitir milhares e ser privatizada?

Desta unificação de "grandes pólos" dos trabalhadores, não seria possível organizar e ajudar a organizar comissões de mobilização e oposições entre os trabalhadores do call center? E entre os trabalhadores nos serviços? Não seria possível organizar assembléias de desempregados, que unissem organização, luta e ajuda material das categorias empregadas aos desempregados?

Isso não poderia envolver tanto grevistas quanto aqueles que não puderam ainda entrar em greve, mas que querem ajudar a "dar corpo" a este movimento?

Diante disso, quem poderia dizer que os trabalhadores no Brasil não tem voz, que não existem, que não tem força?

De todo esse movimento, não seria possível organizar um grande congresso, com membros de cada um destes setores citados, convocando os indígenas para se organizarem em conjunto, organizando uma pauta comum de reivindicações e luta, articulando seus passos, métodos e golpeando com uma só mão, numa frente única dos trabalhadores?

A CUT é a maior central sindical do Brasil. Possui milhões de verbas e, mais importante, milhões de trabalhadores em sua base sindical.

Se existe uma estratégia para não vencer é a de manter a greve da Petrobrás isolada, com efetivos isolados dos terceirizados, petroleiros isolados dos demais, apelando para ações midiáticas, moções de apoio e audiências na Justiça.

Se existe alguém capaz de dar passos nesse sentido é a CUT. Ao não fazê-lo, ela contribui não apenas para manutenção de toda a terra arrasada, para a derrota da greve e para, claro, o avanço do projeto bolsonarista neoliberal.

Veremos se, uma vez mais, as direções de CUT e PT, com medo de perder o controle, de ter de ceder espaço para a organização e ação livre e direta dos trabalhadores, trarão mais está derrota.

Isto marcaria mais um sinal de que estão dispostos a tudo para manter seu lugar no regime político como "conciliadores" entre trabalhadores e patrões, inclusive, direta e indiretamente, sustentar as condições que permitem Bolsonaro, Guedes e os bancos destruírem a vida do povo. Eles tem a faca e o queijo na mão, mas parecem não ter fome.

E aqui é que vem a responsabilidade de nós trabalhadores. Em primeiro os petroleiros, que devem refletir quais os caminhos para vencer; se este, baseado numa ação coletiva, ou o outro, baseado na ação controlada proposta por suas direções.  E, se for a primeira, cabe a estes forçarem este caminho.

Disto dependem vitórias objetivas e subjetivas para a classe trabalhadora. Se uma categoria capaz de rasgar os bolsos dos magnatas for derrotada, uma onda de desânimo adicional é quase certa.

E uma greve isolada da Petrobrás duramente duraria mais um mês. Os prejuízos são contidos e o patrão já mediu o teto da força dos trabalhadores. É hora de ampliar suas "reservas" e trazer mais lutadores para a arena.