domingo, 20 de outubro de 2019

Revoltas na América latina e crise no Brasil: o que é ser de esquerda e socialista?



Até 2013 é possível dizer que, diante da massa de trabalhadores e mesmo de seu setor mais ativo politicamente, a chamada “vanguarda”, era muito confusa a definição do que chamamos “esquerda”.

Como resposta a piora de vida obtida pelos governos neoliberais da direita anteriores a Lula, milhões de brasileiros projetaram suas expectativas na eleição vitoriosa para presidente, pela primeira vez na história, de um candidato do PT.

O teto de um “projeto de país”, se assim podemos chamar a conjunção amorfa de expectativas populares, estava contido na fórmula PTista de avanço gradual das condições de vida baseado no consumo e medidas assistenciais.

Para isso, o crédito barato, controle inflacionário e cambio flutuante, o “tripé macroeconômico” do neoliberalismo, eram a política econômica num período muito especial de nossa história: o boom das commoditties, com a enorme quantidade e o alto valor de mercado dos bens primários (soja, minério de ferro, petróleo cru, cana, etc) vendidos principalmente para a China.

Com suas altíssimas taxas de crescimento, chegando a dois dígitos, num período de quase três décadas seguidas, a China arrastou o Brasil e o protegeu dos primeiros efeitos da enorme crise econômica mundial aberta em 2008.

Tal bonança momentânea esteve por trás do crescimento nos dois mandatos de Lula e na maior parte do governo Dilma até 2013.
Esta conjuntura, se beneficiou os mais pobres através de programas de transferência de renda, como o “Bolsa Família” e a ampliação do acesso da juventude mais pobre as universidades através do PROUNI e FIES, também tornou a vida dos grandes monopólios empresariais e bancos muito melhores, com lucros recordes de bilhões, muito além do gasto nestes programas sociais.

Os efeitos práticos dessa fórmula já são bem conhecidos e  são a base da força PTista no período:
A conciliação entre trabalhadores e magnatas realizada pelo PT num momento econômico favorável aparecia aos milhões de trabalhadores como um plano esperto e bem sucedido, sendo o efeito mais marcante do crédito barato e dos programas assistenciais a formação de uma base eleitoral sólida que, acreditando na gradual melhora de vida, conduzia todas as energias e expectativas de resolução dos problemas para dentro do Estado e seus ministérios, instituições e programas.

Vimos uma diminuição das lutas até 2012 em todo o país e o PT, longe de se definir como “esquerda”, adorava se posicionar como “de centro”, vendendo a imagem de um administrador “mais humano” do neoliberalismo e do capitalismo.

O ano de 2013, no entanto, pode ser definido como o marco em que aparecem os limites mais claros a esse cenário de bonança, coincidente com a desaceleração do crescimento chinês.

Este ano, marca a abertura do processo de fissura social que explode na luta contra as o aumento das passagens, botando as “massas” no centro do jogo político, ainda que sem muita forma, englobando de trabalhadores a membros da classe média, todos descontentes com o alto custo de vida nas cidades e, em seguida, com as medidas de austeridade que, a partir de 2014, começam a ser tomadas pelo PT como forma de responder a crise graças a perda de impulso dado pelas exportações internacionais.

De lá para cá sabemos bem como se deu o processo de manipulação midiática e organização do consórcio empresarial nacional e estrangeiro, cujos pontos marcantes são o golpe institucional contra Dilma, como forma de tirar o PT do caminho, acelerar os ataques e, é claro, obter as joias da coroa, a reforma trabalhista e da previdência.

De 2015 até hoje, como mostra a análise da série histórica da PNAD a desigualdade brasileira cresce ininterruptamente, num processo de desagregação econômica flagrante: o PIB caiu 8% na soma dos anos de 2015 e 2016 e nos anos seguintes estagnou, dando sinais de que haverá nova queda em 2019.
 
Os dados socioeconômicos¹ já são conhecidos e sentidos, com metade de todos os trabalhadores na informalidade(!),14 milhões de desempregados e uma realidade em que o 1% mais rico ganha uma renda 34 vezes maior (!!) do que os 50% mais pobres, cuja renda não passa de 820 reais mensais.
Do “Brasil Potência”, com a promessa de crescimento gradual para todos, chegamos ao país que mais concentra renda no 1% mais rico no mundo (!!!).

O problema da concentração de renda está na base do principal problema brasileiro, muito maior do que a corrupção: a desigualdade econômica.

A concentração de renda brasileira não é um problema novo e é resultado do fato de que o Brasil historicamente, na divisão internacional do trabalho ocupa o papel de “semicolônia”, cujo papel é suprir as grandes metrópoles capitalistas com seus insumos e importar, a preços muito mais altos, todo o maquinário, tecnologia e produtos industrializados delas.
Sendo assim, tem sua economia dominada pelos grandes bancos que são aqueles que possuem o capital necessário, concentrado através de juros absurdos, para se investir, seja na agricultura ou nas indústrias que existem no país.

A atual crise levou, até 2017, ao fechamento de mais de 350 mil empresas, dentre estas, obviamente, a maior parte de pequenos negócios (99% com até 9 funcionários)², levando a maior concentração da produção e serviços nas mãos dos poucos monopólios internacionais, igualmente controlados, é claro, pelos bancos dos quais dependem para obter capital e investir.

A classe média e pequena-burguesia, que arriscava seu pouco capital quebrou aos milhões e o sonho do Brasil “empreendedor” parece cada vez mais sepultado; o que, de alguma forma, explica ao mesmo tempo o ódio deste setor ao PT - que, no entanto, lhes havia prometido bons e graduais ventos para sempre - e seu apoio entusiasmado, que já começa a esvaziar, a Bolsonaro, que prometeu acabar com “tudo isso” e obter algum crescimento mágico.

A concentração de renda é a expressão social e econômica de um modelo de acumulação de riqueza que, por sua vez, depende fundamentalmente do principal problema do capitalismo para os trabalhadores, que deveria ser o centro do combate de algo chamado de “esquerda”: a exploração do trabalho, ou seja, o conhecido mecanismo através do qual a minoria de patrões toma a maior parte da riqueza gerada pelo trabalho ("mais valia ou mais valor") de cada trabalhador sem pagar nada por isto, apenas pagando um salário cujo valor é muito menor do que a riqueza gerada por ele.

E é aqui que a crise, apesar de seus efeitos agravantes do ponto de vista social, econômico e, inclusive, psicológico para nossa geração, nos oferece uma oportunidade única: a de dar nome ao que se chama de “esquerda” e, assim, entender seus projetos (ou a falta deles) para o país.

Num momento de melhores condições econômicas e esperanças de melhoria gradual, ou seja, todo o período de formação (no caso dos mais jovens) e um longo período de atuação (no caso dos mais velhos) das atuais lideranças dos partidos socialistas brasileiros, como PSOL, PSTU, PCB e outros menores, era muito difícil se observar os efeitos práticos e as diferenças práticas das posições políticas, posicionamentos e propostas entre tais grupos.

Com as energias populares desviadas para dentro do Estado burguês, esperando uma resolução de seus problemas “por cima”, grande parte dos trabalhadores e pobres nem sequer sabiam da existência de tais organizações, sendo um período de muita pressão a que estas se adaptassem a gritar aos quatro ventos, sem muito efeito, esmagadas pelo peso da ilusão PTista.

Tal escola não foi muito boa pois, quando a situação deu um giro e, desde 2013, encontramos um país em convulsão e polarizado, com uma recessão profunda, estes partidos se encontraram sem ligações, sem projeto e sem respostas claras para a profunda piora da vida, dos trabalhos (informais, terceirizados, uberizados, desestruturados, intermitentes) e da renda da maioria da população.

O que é ser então de esquerda e, mais enigmático ainda, “socialista” no Brasil de 2019?

A resposta a esta pergunta está, inevitavelmente, na resposta que tais grupos dão (ou não dão) ao problema da base de acumulação de capitais, ou seja, a exploração do trabalho, e, assim, ao problema do Poder no Brasil.

Recentemente, tomou a atenção de toda a América latina a enorme revolta dos trabalhadores, camponeses e indígenas do Equador, contra as medidas de austeridade de seu governo, que nada mais eram do que exigências do FMI  para emprestar dinheiro.

Vivemos, neste exato momento, uma onda de revolta popular no Chile, cuja gravidade levou ao governo capitalista de Piñera a determinar o absurdo “estado de emergência”, buscando impedir o direito de expressão, organização e reunião em toda cidade de Santiago, colocando mais de 10 mil militares nas ruas para intimidar o povo que se revolta, pula catracas, toma estações e apedreja multinacionais que lucram bilhões enquanto pioram a vida da maioria. 

Estes dois exemplos tem em comum o fato de que os trabalhadores, cansados  e já esmagados por uma vida dura, sem saber se conseguirão terminar o mês pagando suas contas, se viram diante de mais “faca na carne” e decidiram tomar os destinos e rumos da política e economia em suas mãos: tomando as ruas, praças, empresas e estações e gritando que não aceitarão serem mais esmagadas.

Esta “ação direta” das massas corresponde a um sinal dos tempos para toda a América Latina diante de uma crise mundial que se avizinha e uma vida que só piora. Já figuram nas manifestações chilenas algo muito parecido com o que se dizia em 2013 no Brasil, de que os atos “não são só por 20 centavos”, mas também por moradia, saúde, educação, contra a lata dos combustíveis, das tarifas, etc.
Sem projeto e direção, no entanto, tais revoltas podem ser desviadas ou se esvaziar.

Ocorre que as atuais organizações da esquerda continuam em seu caminho distante de uma resposta revolucionária, a única eficaz contra a exploração do trabalho e, portanto, contra o capitalismo e seus efeitos.

O problema não é apenas que o PSOL abandonou, de conjunto, qualquer agitação de idéias que apontem para o fim da exploração do trabalho, defendendo a propriedade coletiva de todas as grandes empresas, monopólios e bancos. Tampouco que não mencionem como objetivos a nacionalização de todos os bancos e seus capitais, como forma de acabar com o controle destes sobre tudo o que é produzido e no que se investe no país.
Também não é apenas o fato de que o PSTU mantém uma fraseologia de “revolução”, enquanto atuam em seus sindicatos vendo demissões (metrô, Embraer, GM), fechamento de fábricas (Embraer), sem fazer ou dar qualquer exemplo de luta ou, como vários dos menores grupos, nem sequer tem influência e relação com a massa de trabalhadores e seus trabalhos precários.

O ponto fundamental do problema é que não apenas tais organizações estão isoladas da maioria dos trabalhadores, como suas ações não se preparam para se ligar a estes e nem aos trabalhadores para o necessário choque contra o Estado e suas “forças fáticas”, como a polícia e o judiciário, quando as explosões acontecerem, novamente, no Brasil.

Em poucas palavras, as organizações ditas “de esquerda” e “socialistas”, adaptadas a vida na “democracia burguesa”, seguem conduzindo todas as esperanças dos poucos setores populares que influenciam para o Estado, sua Justiça e suas instituições, sem nem sequer buscar se ligar aos trabalhadores mais explorados, onde residem as energias mais explosivas.

Como explicar que num país de 14 milhões de desempregados, não existe uma ação comum das organizações para organizar e ajudar, seja com cursos, doação de alimentos, criação de espaços de organização comum entre empregados e desempregados, nada, para retomar a consciência de classe de que “trabalhador luta por trabalhador”?

O projeto máximo que apontam - no caso do PSOL - é a eleição de mais parlamentares não para acabar com a exploração do trabalho e, assim, com a concentração e renda, base da acumulação de capital e da desigualdade, mas para “civilizar”, “suavizar” ou “humanizar” a esta, até, talvez, o que considerem níveis mais “toleráveis” dessa exploração.

Nos casos como do PSTU e demais grupos, a ausência de projeto sério é substituída por frases que chamam “rebeliões socialistas”, sem a menor condição e preparação.

Uma revolução é, por definição, um giro brusco que muda tudo, todas as formas das pessoas se relacionarem entre si, de realizar as trocas, a distribuição dos bens produzidos, como estes bens são produzidos na sociedade, enfim, uma alteração no modo de produção da economia e da sociedade.

O momento crucial e a coroação de uma Revolução é a insurreição.
Quando a “energia” dos trabalhadores e oprimidos, não mais como levantes difusos e espontâneos, mas organizadamente, se dirige ao poder e o arranca das mãos de seu antigo dono (em nosso caso, a burguesia e suas instituições)  inaugurando a construção de uma nova sociedade.
Exemplos históricos são abundantes e, neles, uma coisa é certa: a insurreição é um ato prático.  

Ela demanda preparação, apoio das maiorias do povo, planejamento, tomada de posições (literalmente pontos econômica e estrategicamente relevantes da cidade) enfim, estratégia e, esta, se desenvolve da estratégia de poder organizada bem antes de ser visível o momento possível de uma insurreição.

Sem isto, motins, levantes e revoltas acontecerão como sempre na história da humanidade, mas não haverá solução, tanto para o problema da exploração do trabalho, a base da desigualdade sob o capitalismo, nem para qual nova sociedade colocar no lugar do capitalismo.

Nossa esquerda partidária atual está, teórica e praticamente, muito distante de oferecer respostas e, de sua atual posição, não oferece mais do que performances teatrais parlamentares e sindicais que tem em comum o abandono, na prática, da luta pela superação do capitalismo.

A cada novo levante como no Chile e no Equador, se coloca a questão do Poder, de “quem manda na cidade”, na fábrica, nas terras, no país, em suma, coloca-se a questão de projeto de sociedade nas mentes de todos os que assistem e participam.

Estas oportunidades são únicas para os revolucionários responderem com suas idéias e práticas que a melhoria de vida não pode vir com a administração do capitalismo, que a riqueza numa ponta significa pobreza na outra.

São as chances de obterem influência e, junto dos trabalhadores, a classe social que produz tudo, construírem uma organização que se aproxime mais e mais da influência e organização necessárias para, no momento decisivo, realizarem a insurreição e a tomada do poder, que dará início a um novo governo das maiorias e ao fim do capitalismo no Brasil e, assim, em outros países do mundo. 

Quanto mais hegemônica e alastrada for a influência dos trabalhadores revolucionários, menor será a resistência e, assim, violência dos atuais “concentradores de renda”, tornando a revolução o menos violenta possível, algo desejável por qualquer marxista.

Maiores serão, também, as energias para construir a nova sociedade e um governo democrático de representantes sem privilégios salariais, revogáveis, eleitos e controlados diretamente pelo povo, realizar a industrialização, a universalização do acesso a educação, saúde, moradia, transporte e alimentação e, enfim, construir um projeto de país e de mundo que, conforme outras revoluções eclodam em outros países, somem a solidariedade dos trabalhadores de todos os países para enterrar de vez este sistema de exploração.

Este é um projeto que demanda uma construção através da estratégia revolucionária mencionada. Quando, no entanto, se diz em voz alta, se percebe a distância entre este caminho e o trilhado pela “estratégia” das atuais organizações ditas “socialistas”.

Certamente, no entanto, assim como é muito mais fácil diferenciar na prática as atuais organizações quando o “calor” dos acontecimentos pressionam nossas vidas, também será inevitável que rupturas e fusões ocorram sob a pressão dos erros e becos sem saídas nos quais estas entraram.
Seus militantes refletirão, com a honestidade exigida pelos tempos, o porquê de suas ações terem pouco ou nenhum efeito e, uma vez mais, os mais revolucionários, dentro e fora destes partidos, encontrarão seu caminho.

Enquanto existir exploração haverá luta. E enquanto há luta, há chance de vitória. Desde que a preparemos. 

¹
https://exame.abril.com.br/economia/1-mais-rico-ganha-34-vezes-mais-do-que-a-metade-mais-pobre-diz-ibge/?fbclid=IwAR0IpHciBVGfFXmX95tfW6sxybGuPLx4LbVxKJuXbU3UQ_BsSlnV1RZfzDI
²
https://noticias.r7.com/economia/brasil-fecha-mais-empresas-do-que-abre-pelo-4-ano-seguido-diz-ibge-17102019