
Estreou na última sexta-feira a refilmagem do clássico de ação e ficção
científica, Robocop, que tomou as telas dos cinemas na década de 90, contando a
história de Alex Murphy, um policial que, no original, após emboscada de uma
gangue, tem quase a totalidade de seu corpo comprometido e fuzilado e é, então,
encaminhado para uma “segunda vida” como o policial robótico do futuro,
responsável pela segurança das Ruas de Detroit.
O filme, patrocinado pela Sony (grande multinacional japonesa), assinado por
José Padilha (diretor de Tropa de elite 1 e 2) e tendo em posições chave da
produção, mais quatro brasileiros, conta com figuras bastante conhecidas do
cinema, como Samuel L. Jackson, Gary Oldman e tem, como todo produto de
Hollywood o fim de entreter, com muito tiro, sangue e drama.
No entanto, mesmo esmagado pelas curtas margens da fome de lucro de Hollywood,
o filme consegue não se manter preso apenas nisto e, na transição de uma cena a
outra, de mudança de cenários, como base de justificativa para reviravoltas no
enredo, se afasta da noção de besteirol e entra no trilho de importantes
reflexões abertas pela situação mundial e em particular dos EUA, de hoje em
dia.
O filme se inicia, numa escura e dramática cena protagonizada por Samuel L Jackson
que, no melhor estilo “Brasil Urgente” ou “Cidade alerta”, se apresenta como
Novak, o apresentador de um programa conservador de direita, que trata,
aparentemente, de um único tema que é a crise de “segurança” que assola a vida
dos Norte-americanos, levando, em suas palavras “vidas policiais e de famílias
de bem”, no não tão distante ano de 2024.
Nos primeiros minutos, se apresenta o tipo de recurso que vai ser utilizado
muitas vezes ao longo do filme, que é o de imagens e cenários curtos e
sugestivos.
Novak, discursando sobre a situação de
calamidade de segurança nos EUA, apresenta aos telespectadores a alternativa,
dada pelos Estados Unidos, para a pretensa “falta de segurança” no mundo. Esta
solução é trazida pelo conglomerado industrial chamado Omnicorp, que, na prática,
substituiu policiais e soldados por máquinas de guerra de formato humano, engajadas em “proteger e
executar” em distintas partes do mundo, a lei e a ordem.
Neste mesmo noticiário, repórteres correspondentes de Novak estão num dos
locais pacificados buscando uma demonstração da efetividade e “tranqüilidade”
garantida pelos robôs a população .
O local da ação é Teerã, capital do Irã, que atualmente é alvo de sanções e
pressão militar e política dos EUA, por ser uma nação “não alinhada” no
oriente-médio e , supostamente, ter iniciado o desenvolvimento de um programa nuclear
com fins bélicos.
Aparentemente, este Irã do futuro foi ocupado pelas forças “pacificadoras” dos
EUA que, segundo Novak e o General com o qual conversava ao longo do programa,
aprenderam com Iraque, Afeganistão e Vietnam, e decidiram dar o passo além com
os robôs, a fim de pacificá-lo, sem arriscar vidas norte americanas.
Numa cena que claramente serve como crítica a esta falsa serenidade, se
apresenta uma família de iranianos discutindo para que um irmão mais velho não
fosse fazer algo, enquanto seu irmão mais novo chora e se agita frente a
decisão do irmão.
Com o corte da cena, se apresenta um grupo de jovens, com bombas amarradas no
corpo, com o objetivo de, na frente das câmeras, mostrarem os robôs matando-os
friamente, com seus sistemas automáticos de defesa. Ao longo da rua, os robôs
mais humanóides batem de casa em casa para que os moradores se apresentem, retirando famílias inteiras para demonstrar
sua eficácia.
O grupo de jovens, então, iniciam o ataque e são rapidamente dizimados pelos
robôs em frente as câmeras. Nesta cena, o jovem mais novo, ao ver seu irmão e
demais sendo mortos, sai de sua casa com uma faca em punho enfrentando um robô
de 3 metros que, ao identificar o garoto, o executa friamente. Após esta cena,
Novak corta a transmissão, por “razões de segurança” e, ao mesmo tempo, exalta
a eficiência e segurança de sua equipe perguntando “porquê, então, em terras
americanas não podemos usar estes Robôs?”.
O filme desenvolve uma linha paralela ao drama pessoal de Murphy que, após investigar um mafioso com relações
profundas com policiais dentro de seu distrito, tem seu carro explodido num
atentado em Chicago e perde quase todo seu corpo, se tornando, por decisão da
família, o projeto Robocop.
Esta linha paralela é a tensão entre o presidente da Omnicorp, a grande
responsável pela solução da crise de “segurança” em Teerã, Rio de Janeiro,
Congo, e pelas vidas norte-americanas “salvas” e um senador chamado Dreyfus.
Ambos estão numa queda de braço pela opinião pública quanto a se a emenda
Dreyfus, que proíbe o uso de robôs nos EUA, deve ou não ser vetada.
O presidente da Omnicorp, que, apesar de dominar os mercados de grande parte do
mundo, visa os possíveis bilhões em lucros com a conquista do mercado dos EUA,
começa a disputa, no filme, perdendo frente aos argumentos de que um robô não
poderia decidir sobre a vida ou morte de um humano.
Como solução a esta encruzilhada,
percebe que o que a sociedade quer é que haja a mesma eficácia dos robôs, mas
com um homem em seu “suposto” comando.
Daí, começam a procurar a candidatos ao projeto Robocop, dirigido por um
cientista engajado em projetos de reconstituição robótica de membros,
encontrando em Murphy e sua desesperada família os candidatos perfeitos.
Murphy, então, após a pressão da empresa sob sua família, desperta para a vida,
novamente, como Robocop, uma espécie de
andróide que combina um corpo em sua maioria robótico, com apenas os sistemas
respiratório e cerebral (além do rosto) orgânicos.
Em mais um corte de cena “crítico”, surge Murphy
acordando numa espécie de laboratório, dentro do qual começa a ter um surto
graças a sua nova condição robótica.
Desnorteado, começa a fugir, correndo rapidamente pelos corredores de uma
gigantesca fábrica que vai, corredor após corredor, demonstrando ser um gigantesco complexo industrial na China,
dentro do qual evidencia-se uma enorme linha de montagem, com milhares de
chineses em bancadas de produção e de avental rosa, observando assustados o andróide
que, ao pular os muros da fábrica, cai em cima de uma vasta plantação alagada
de arroz trabalhada por camponeses, em frente ao complexo defendido por Robôs
armados até os dentes.
Claramente uma referência ao banquete que os grandes monopólios capitalistas (como
Apple, Samsung, etc) obtém com a baratíssima e super-explorada (e supervigiada)
mão de obra operária chinesa que, trabalham em complexos industriais ultra
avançados e convivem com a miséria e simplicidade da vida de outros milhões de
camponeses no interior chinês.
O filme se desenvolve, então, como uma combinação da trama policial que cruza a
vida de Murphy, buscando solucionar o crime que quase o matou, perpetrado por
policiais e até uma chefe do seu distrito policial, e o tema político da emenda
Dreyfus, que expressa a tensão entre o humano e a máquina.
Numa das partes mais interessantes do filme, talvez, Robocop está em
treinamento e competindo com um Robô quanto a eficácia em combate.
Vez após a outra, ele hesita frente a um criminoso que toma uma criança como
refém, levando 3 segundos a mais para matá-lo, do que o robô. Isto abre uma
crise entre os projetistas que, tendo de mostrar resultados, então, decidem atuar
numa operação no cérebro de Robocop, com o objetivo de fazer o programa de
computador convergir com a consciência do andróide, dando a ele a falsa
impressão de que, enquanto combate, as decisões pragmáticas e frias do programa
de computador seriam as suas decisões “pessoais”, como humano.
Impressões distintas são possíveis, no entanto, esta metáfora, no contexto da
necessidade de eficácia, “eliminação” do criminoso e de “imposição da ordem”,
parece fazer referência a atividade de policiais, segundo a concepção de
Padilha que, programados “pelo sistema”, iludem-se quanto a suposta
possibilidade de livre-arbítrio, sendo levados a tomar decisões
pré-estabelecidas e, muitas vezes, repugnantes, como se fossem suas e se satisfazem
com isto.
Esta seria uma retomada de seu argumento em “Tropa de elite 2”, no qual tenta
demonstrar, com seu discurso anticorrupção, que, numa estrutura corrupta, que
visa privilégios ou lucros, a ação individual e a noção de “livre arbítrio”, de
“ser um bom policial”, etc, não teria qualquer chance de desenvolver-se pois se
naturalizariam os “atos repugnantes”, sendo necessária uma limpeza desta
estrutura, numa visão reformista e evolutiva, tanto das instituições
repressivas, como a Polícia, quanto dos sistemas de governo no capitalismo,
atrelados desde a medula e seu nascimento aos interesses das grandes
corporações, empresas, máfias, etc, para os quais a repressão e polícia é
indispensável.
Outra referência ao tema corrupção se dá quando, após descobrir e prender os policiais e a chefe de polícia
que tinham ligações com o mafioso que tentou matá-lo, Robocop é exaltado numa
ação cirúrgica para o mercado, como a evolução do sistema, como uma força da
lei “incorruptível”, que daria o passo que as máquinas sozinhas e a humanidade
não conseguiu, girando a situação para que a emenda Dreyfus fosse revogada e os
robôs fossem permitidos no terreno dos EUA.
Esta cena parece demonstrar um argumento
do autor de como a direita, os jornais pastelões policiais e os grandes
conglomerados capitalistas, podem e efetivamente, usam, temas como a corrupção,
para atingirem seus objetivos privados.
Após a emenda Dreyfus ser revogada, o filme entra num ritmo muito mais veloz,
com cenas de ação cruzando a tentativa da Omnicorp assassinar e fraudar a morte
de Robocop, pois este começa a “fugir de seu propósito” após a investigação
dentro da delegacia, e a tentativa deste
em prender o presidente da companhia.
O desenvolvimento da trama, cruzado pelas situações citadas e o jornal
sensacionalista de Novak, levam a que este jornal demonstre-se frequentemente
atrelado aos interesses da grande companhia Omnicorp e a visão de “segurança”
dada pelos EUA ao mundo.
Ao longo do filme, este jornal expressa a tentativa dos grandes monopólios em
mudar a maré da opinião pública e garantir a abertura do mercado dos EUA aos
robôs, de modo a que a série de manobras que fazem, a manipulação e o discurso acidamente
de direita, repressivo, leva, para quem vê o filme, a deslegitimação do
programa, como se fosse quase um a sátira ou caricatura da realidade.
É interessante notar que, nas últimas frases do filme, que coincidem com um
discurso de L Jackson sobre a segurança e a política dos EUA no mundo, é aonde
se condensa e explicita mais claramente um dos objetivos que sutilmente vai
cruzando o filme.
Neste discurso, Novak, após xingar aos palavrões e berros no melhor estilo Datena
ou Alborghetti, a decisão do presidente em restabelecer a emenda Dreyfus,
retomando a proibição de robôs, ironiza os “reclamões” que insinuam que a
política dos EUA seriam uma espécie de “agressão imperialista”, devido a
utilização de Drones (aviões não tripulados para ataque, em uso hoje no Iraque e
Afeganistão) e robôs e que estes deveriam
parar de reclamar.
Numa finalização exaltada, sob o som de trompetes e com a bandeira dos EUA tremulando
ao fundo, Novak diz que a “América, ainda é a maior nação do mundo” e merece
ser protegida da melhor forma, numa referência a doutrina “messiânica” de um
destino “especial” da nação estadunidense, que vigora nas concepções dos
grandes capitalistas dirigentes do Governo dos EUA desde o pós 2ª Guerra.
Após os atentados do 11de setembro, inclusive, tal doutrina ganha força se
materializando na idéia de que os EUA devem espalhar o “bem” ao redor do mundo,
idéia base da “guerra ao terror” e as invasões (por motivos econômicos e
geopolíticos) de Iraque, Afeganistão e, agora, de todas as tensões com Irã,
Coréia do Norte e das intervenções na Líbia.
Não se trata de um filme revolucionário, muito menos, sob as margens estreitas
dos rios de dólares hollywodianos, consegue impor que este supere
definitivamente os traços de besteirol com suas balas e sangue. Isto tudo
existe, mas de longe, não é o que predomina na narrativa.
O filme tem o mérito de, aos milhões, insinuar e colocar questões que tratam de
temas cruciais mundialmente, que surgem com a decadência da hegemonia e
dominação dos EUA no mundo. Após a Guerra do Iraque e Afeganistão, ficaram
claros os custos políticos e humanos de uma ação imperialista visando a
dominação econômica e política, sobretudo numa região turbulenta como o oriente
médio. A crítica, sutil, desta ação está presente no filme.
A possibilidade de desenvolver-se uma crítica, por sutil que seja, por dentro
de uma das maiores indústrias da nação imperialista, apesar de enfraquecida,
mais forte do mundo, expressa, também, uma insatisfação interna da opinião
pública, uma correlação de forças dentro dos EUA que com sua insatisfação
crescente com as conclusões militares da doutrina “messiânica”, não apenas foi
um elemento de pressão (combinado com a crise econômica e o rombo de gastos com
as guerras) que levou a retirada parcial das tropas do Iraque, como se
demonstrou um barril de pólvora que Obama decidiu não acender, quando da tentativa
do governo em impor uma intervenção na Síria.
A ridicularização, no programa de Novak, de que fariam agressões“ imperialistas”
, na verdade, é a conclusão de toda uma construção sutil, que vai se
desenvolvendo no filme e expressa um tema que aparece em diversas outros filmes,
como, inclusive, o novo Superman, quando o homem de aço é vigiado pelo
pentágono por um drone e o destrói, dizendo que “ Porquê me vigiam? Eu sou um
americano”, ao que é respondido por um militar com um “precisamos ficar de olho”,
numa referência, tanto a ação assassina dos Drones, quanto a espionagem militar
e política desenfreada desenvolvida pelos EUA, dentro e fora de suas
fronteiras.