domingo, 4 de outubro de 2015

Sobre cafezinhos matinais e intimidades anônimas.


“Todo dia ela faz tudo sempre igual, se sacode as seis horas da manhã”....

É embalado neste ritmo que ele levanta.
Em seu caso, a música poderia ajustar seu relógio interno e apontar para cinco da manhã. Ainda assim, a idéia da rotina está ali, onipresente, como que transbordando dos fones de ouvido, retirando um pequeno sorriso sádico, como de quem tira um sarro de si mesmo por estar tão próximo da ficção, embalando o ritmo cadenciado do cotidiano.

As 5:35 põe o pé na estrada e começa o rito diário. Aqui, os lugares comuns são incontornáveis e fonte de controversa satisfação. No ponto as 5:40, dentro do ônibus as 5:50, na entrada da estação de metrô as 6:05, na plataforma as 6:07, não importa, o movimento se repete: Caminha, encontra um lugar, levanta a cabeça, faz a varredura.

Com ela, percebe rostos conhecidos, cuja intimidade se faz sentir pela comunhão sagrada do perpétuo repetir de ações; se entreolham. No começo olhares curiosos, como de uma criança tentando se reconhecer no espaço, se integrar ao ambiente, entender as intenções e gestos.

Após tantas repetições, da casca dura da apatia irrompe o tímido sorriso, um “bom dia” em seco, um balançar de cabeça, um estribido de proximidade e, novamente, um lampejo de satisfação controversa pulsa para fora da austera normalidade.

O destino impõe um ritmo de ser. O horário é implacável. Não se pode perder tempo com frivolidades gestuais. Há de adentrar ao fluxo, chegar no horário, postar-se apresentável, vestir a motivação – ou, melhor dito, a resistência- e começar sua parcela no empurra-empurra de engrenagens alienantes, na marcha do dia a dia.

De todo modo, não se pode escapar a biologia. O material ainda é - e sempre será- o que move os humanos, seja para as grandes ou pequenas realizações. Em seu caso, a realização é parar o estampido, que religiosamente dobra seu estômago as 6:35. Aquela escapadela, antes de tomar seu papel, é a solução.

Sobe a escada, olha o céu ainda turvo e iluminado lateralmente por um Sol que ainda não se mostra, sai pela entrada, olha as tabuas improvisadas por cima das quais se preparam tapiocas e cafezinhos por ambulantes cada dia mais numerosos - seria crise? – e entra na lanchonete.

Mal chega, dirige-se ao freezer, pega sua Coca e, ao virar, encontra o braço estendido do atendente que, sem sequer ser indagado já oferece o corriqueiro canudo, a empada no pratinho de plástico e o banco no qual por tantas vezes sentou, por vezes com um sorriso, outras com um bom dia e ainda outras com aquele familiar olhar apático. Tudo em ordem. Tudo como sempre. Tudo normalmente.

Não fosse o estranhamento não pensaria o quão significante é a situação. Pensa em quantos milhões de conexões e relações se estabelecem todos os dias, em todos locais de labuta, em tantas esquinas, avenidas, banquinhas, lanchonetes e, daí, quantas intimidades anônimas se formam assim, produto do cotidiano.

Sim, intimidades. Dois trabalhadores. Não sabem seus nomes, mas naquele instante, cotidianamente, no mesmo lugar, repetem o mesmo ritual e, neste, expressam uma intimidade, tímida, sem dúvida, mas que estabelece uma conexão em meio a fria normalidade e austeridade de São Paulo.

Ali, no pequeno instante da gentileza, o atendente expressa a intimidade de saber que tipo de comida, com que tipo de prato, em que lugar e que salgado ele prefere. A pergunta não se faz necessária.

Através da relação de troca, da compra e venda, este baluarte sagrado que media todas as relações e enrijece sensibilidades e sensações nesta sociedade de lucro, se estabelece a conexão. Tímida e frágil, é verdade, mas ainda assim uma relação.

Um reconhece o outro e, apesar de não saberem nada de si, sorriem, timidamente, pelo gesto de intimidade, que os localiza num mesmo espaço e numa mesma situação. Tal como plantas que brotam de um solo de rígido concreto, esta relação os faz se sentirem mutuamente percebidos, não tão invisíveis e objetificados pelas obrigações e o fluxo do cotidiano.

Afinal, no deserto subjetivo desta maquina de moer gente, o pequeno gesto é o gérmen de uma solidariedade, uma percepção mútua, de um pertencer ao mesmo lugar e, ao menos ali, tornar a presença de alguém real, distanciando, por milímetros que seja, a vida da fria e implacável exatidão dos números, das horas, dos valores e do lucro.

Talvez amanhã eles perguntem o nome um do outro... Ou talvez ai esteja o limite seguro que o cotidiano os permitirá chegar.

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