domingo, 11 de maio de 2025

A Pedra e a Espiral


 - Ah, que se foda. Hoje vô atrasar.


Já tava bem pilhado a essa altura, quando parou para tomar um pingado e comer um bauru na lanchonete, a uns três quarteirões do trabalho.

Esse hábito de comer antes do trabalho havia emprestado do pai, que vez ou outra o levava pra ficar no almoxarifado da empresa durante o turno. Lembrava que sempre chegavam à empresa naquele momento do fim da madrugada e início da manhã, quando o sol parecia surgir devagar no horizonte, com a mesma preguiça de quem empurra sonolento as cobertas e vira o corpo pra decidir despertar.

Depois de algumas crises e demissões, em geral comia nas lanchonetes da região mas, às vezes, a empresa, como os chefetes gostavam de sublinhar, “dava” um pão com manteiga pra cada funcionário e pressionava as tiazinhas da limpeza a fazer café, distribuídos em quatro garrafas, pra turba de insones que iniciaria o dia na fábrica.
Era o que o velho contava. Quando estava lá, Wesley não pensava em nada disso. Ele só vivia e gostava de poder passar um dia de trabalho com o pai.

Enquanto engolia o pedaço de pão ensopado no copo americano preenchido até a metade, seu pai sempre resmungava, como que só pra ele ouvir, “a gente tem de agradecer pelo trabalho que nos dão”. Depois de falar, dava uma olhada rápida ao redor e curvava a cabeça em aceno pra alguns colegas da fábrica que também paravam pra comer algo antes do turno.

Após alguma idade, parece que as pessoas mais velhas se agarram a bordões e frases de efeito, como forma de manter um senso de sentido na vida.
Como uma prancha no alto mar de mudanças e solidão que os velhos tem de enfrentar, tentam se equilibrar afirmando suas sabedorias passadas, das quais acreditam ser representantes destacados.

Wesley sempre lembrava do pai dizendo que ele não gostava de confusão. Quando ouvia algum comentário malicioso sobre o milagre de ter café, falava pra Wesley, com aquela testa franzida e expressão sisuda:

- Você tem de ficar longe dessa gente que só fica reclamando. Pra eles você dá a mão e querem o braço. Qual o problema se só hoje tem pão? Que obrigação o patrão tem de dar pra gente?

Enquanto tomava os últimos goles do pingado, Wesley mordia o pão e contabilizava quantos dias ele tinha pra pagar o Paulo. Calculou que até quarta ele conseguiria. Não dava pra adiar mais. Talvez na quinta, se ele conseguisse inventar uma outra história mais convincente.

Enquanto pensava nisso, lembrou do aviso que o policial lhe deu.

- Até o meio da semana que vem eu quero a porra do meu dinheiro na minha conta. Cê já sabe meu pix, faz essa merda. Cê tá achando que tá lidando com quem, seu filho da puta? Se eu entrar aí – e não vai ser sozinho – a gente vai aloprar sua casa inteira com quem tiver dentro.      

Em geral o tempo no trabalho passava rápido. No almoxarifado na Barão de Duprat, trampava no estoque subindo e descendo todo tipo de muamba. Nos dois andares do amplo galpão dos armarinhos, ele sempre encontrava uma canto pra dar um nó depois do almoço ou quando sentia muitas dores nas costas.

Sempre que deitava numa daquelas lonas surradas entre prateleiras – com habilidade encontrando um ponto em que a lâmpada estivesse queimada – lembrava do seu velho e das visitas que fazia a sua fábrica. Pensava na ironia de estarem trabalhando com a mesma coisa, ainda que o velho, na época das visitas, já não carregasse mais nada e fosse uma espécie de encarregado da peãozada do almoxarifado.

Por vezes, tomava um susto quando, andando pelos corredores, olhava-se nos reflexos das janelas engorduradas  e via em sua forma de andar um semblante do pai.
Emudecia, assustado e, sem verbalizar, afastava o pensamento, como que fugindo de uma premonição de destino.

Naquele dia, já no fim da tarde, decidiu não enrolar na saída. Deu um alô pro Cléber, despediu-se da Fátima e meteu o pé pela 25 de março, em meio a geleia de gente que descia escorrendo apressada pro subsolo do metrô.

Um pouco antes da ladeira, entrou numa viela sem saída, uma daquelas que parecem um cenário daqueles filmes de kung fu urbanos dos anos 80, pra fumar um cigarro e tomar algumas decisões.

Da outra vez tinha sido tudo de boa. É claro que o Paulo tinha de falar grosso. Ele no fundo era um cara firmeza. Emprestar dinheiro pra um monte de fudido que nem ele deve ser um puta trampo de risco. Mas ele sabia que “eu tardo, mas não faio, como diria meu pai”, pensava Wesley.

Tragando e pensando, as coisas pareciam mais simples de se ajeitar. O prazo não era tão curto, o agiota não era tão raivoso, o valor nem tão alto...

Um rastro de cinzas com brasas passou em frente aos seus olhos enquanto sua visão deitava na horizontal. Uma bota preta com um desgaste bem evidente toma o campo de visão e então mais um estrondo.

- O Paulo te falou, seu arrombado. Cala tua boca!
Erguido pelas axilas, o grupo de homens arrastou o corpo quase inerte de Wesley até uma Van estacionada no final da rua.
Sua traseira tinha uma daquelas portas que abrem e no fundo da Van pareceu que uma fileira de bancos tinha sido retirada pra acomodar os desafortunados que viessem a conhecer tal distinto meio de transporte.

Tudo acontecia muito rápido e Wesley, zonzo, tinha pouca capacidade de reter informações precisas. Eram três homens sentados e um motorista. Da fresta da porta da van, conseguia ver a luz do sol sendo dirimida, diminuindo, até dar lugar aos faróis de carros e luzes das propagandas nas fachadas. A noite se estendia.

Numa golfada de ar desesperada, Wesley arregalou os olhos e se levantou abruptamente para tentar ver pela janela da porta para onde ia.

Um segundo choque irrompeu com um barulho alto e tornou a lhe deixar zonzo mas, dessa vez, parecia que o interruptor de desligar da sua cabeça tinha sido acionado em outra parte, de modo que o efeito da batida foi, também, diferente, mais retardado, dando um sono que, pouco a pouco, deixo claro que não lhe daria a menor chance de escapar.

De um fundo escuro e imutável, aquele tipo de nada que a gente só experimenta quando dorme mal sem sonhar, mas que, ao mesmo tempo, transmite uma paz aparentemente perpétua capaz de ser vivida, borrões vermelhos e gritos começaram a pulular.

Sentiu que estava em uma sala muito grande, espaçosa, mas mal iluminada.

Numa das suas laterais, um beliche com uma menina descabelada brincando em cima, parecendo mais velha. Uma lâmpada incandescente descia pendurada por fios retorcidos no centro da sala. Dava pra ver uma porta que conduzia para um cômodo com uma luz mais forte, de onde vinha uma voz bonita que cantarolava uma música antiga e familiar

- Deixe-me ir

Preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não choraaaaaar


A música continuava, a garotinha brincava dando gargalhadas enquanto simulava gestos e movimentos com sua boneca e ele girava pra um lado e pro outro. Tentava se levantar e se mexer, mas não conseguia. O máximo que podia fazer era balançar seu corpo. Percebeu que estava em cima de uma toalha enorme, como nunca havia visto. Percebeu também que a cama lhe parecia muito grande, como aquelas que viu quando visitou aquela casa de turistas em Itú com a Vó Lena. Flutuando naquela maciez imponente, ele percebeu uma vontade enorme de rir. De repente, gargalhava como nunca em anos! Ria, batia os braços na toalha macia, chegava até a soluçar...
Por alguns momentos se deixou levar totalmente por aquele momento e desejou nunca mais se retirar. Tudo parecia tão grande, tão espaçoso, tão macio...

Um barulho alto interrompe a percepção. Nesse momento, Wesley é tomado por um sentimento de desespero incontrolável, visceral, banhando todo seu ser e encontrando vazão num choro estridente e alto. Podia perceber que alguma cena se desenrolava, mas não conseguia desviar do sentimento urgente que tomava seus sentidos. Seu choro copioso era estranho, entremeado por uma voz estridente que, apesar de lhe soar familiar, não parecia ser sua, soando por aguda e irregular demais.

De relance, percebeu que a porta do cômodo estava escancarada e, na entrada, via uma mulher de vestido florido até os joelhos igualmente desesperada.

Os balbuciares lhe soavam indistinguíveis, mas diante de três homens a mulher esperneava, chorava e gesticulava como que implorando algo. Num gesto tempestuoso, enquanto um dos homens, usando um boné cinza com um símbolo estranho no meio, agarrava os dois pulsos da mulher e a balançava, o clima de terror adquiriu proporções ainda mais agudas.

Wesley percebeu que seu corpo girava de um lado para o outro, mas não conseguia deixar de se apoiar em suas costas na cama, de modo que sentia seu peito encharcar com o escorrer das lágrimas. Os berros e batidas soavam mais altos do que qualquer coisa que lembrasse ter presenciado e, então, os outros dois homens começaram uma destruição absurda.

Ouvia o estilhaçar de copos, as dobradiças de portas e tábuas de prateleiras arrebentando e, de repente, sentiu sua cama tombando para um lado até ser brutalmente lançado no ar. Conforme foi propelido, sentiu os sons se transformando, os berros diminuírem e a cena se distorcendo.

Teve o impulso de proteção de erguer as mãos na frente do rosto e ao fazer o gesto sentiu como se uma bacia de água gelada tivesse sido jogada em sua cara. Abriu os olhos esfregando o rosto e percebeu seu entorno se estabilizar.

Estava no chão, jogado num piso laranja craquelado e carcomido. Encharcado, tentou sentar-se na poça ao seu redor, recebendo um tapa na cabeça que lhe fez retornar a posição horizontal.

- Fica na porra do chão, Caralho! O Paulo tá chegando.

Wesley não pareceu reconhecer o cara que lhe desferiu o golpe, mas a voz de quem lhe deu a ordem parecia familiar. Era um homem negro, estatura mediana, não particularmente forte, mas que, pelo peso, podia desempenhar bem o papel de leão de chácara que aqueles agiotas empregavam. Deitado sob seu braço esquerdo tentou ver detalhes de seu rosto. Sabia que o conhecia.

Aquele era o Cabo Matias. O filho da puta trabalhava na ronda escolar que rondava a Emei da Alice. Distraído ascendendo um cigarro, ele não percebeu que Wesley o havia reconhecido e continuou digitando algo no celular.

Wesley percebeu que estava numa espécie de quintal traseiro de alguma casa. Pela aparência do que viu ao seu redor, parecia alguma quebrada, com muros de tijolo sem pintura, conectados entre si por aquele característico cimento rústico e algumas vigas expostas.

Ver Matias exerceu em Wesley um efeito de terror parecido com o que experimentou naquela cama. A ideia de sua filha vulnerável todos os dias a qualquer ação daquele desgraçado embrulhava seu estômago e, assim, somada a dor de cabeça lancinante, uma náusea excruciante se instalou.

Outros dois homens, com volume de armas na cintura, olhavam por cima do muro e para o rapaz repetidamente, parecendo agitados. Matias escrevia rápido na tela com os doidos dedões.

- Chegou! Abre lá pra ele – determinou para um dos homens.

A ausência do homem durou uns dois minutos, sucedida da entrada de Paulo. Na horizontal, Wesley via sua silhueta se formando no corredor escuro e mal iluminado da casa, crescendo cada vez mais conforme os passos ganhavam peso e som mais fortes.

Agora suas botas estavam a um metro e meio da sua visão, de modo que levantou um pouco a cabeça para olhar o homem nos olhos.

- Boa noite, cidadão. Vejo que tá bem cuidado. Como dizem? Se o fulano não vai até a montanha...

Paulo interrompeu o aforismo com um sorriso de soslaio, no qual encaixou um derby meio amassado tirado do maço que estava no bolso da frente da farda.

- Precisava disso tudo, campeão? Eu te falei que o prazo vencia no começo dessa semana. Dessa vez você nem me escreveu no zap ou ligou choramingando, né? É... Acho que no seu caso precisava mesmo, tô ficando mole mesmo... um pretinho folgado tentando me dar perdido...

Nesse momento, Wesley olhou pro Matias, que tinha voltado pro quintal e estava encostado numa espécie de pilastra terminando a bituca que tinha sido seu cigarro. Ele olhou pro chão e desviou o olhar, enquanto soltava uma golfada de fumaça no ar.

- Agora vou te falar como é que o negócio vai acontecer – Paulo falou, apontando o cigarro, preso entre o indicador e o polegar, para Wesley.

- Não quero saber de chororô, nem quero saber por que que cê demorou pra pagar meu dinheiro. Cê me devia 15 mil. Agora, como o senhor não me pagou em espécie com aquele jurinhos de 3 mil que te garanti generosamente, sua dívida vai subir pra 25. E eu sei um jeito bem bacana de cobrar de um fudido que nem você.

Um calafrio subiu a espinha de Wesley. Ele não tinha os 15 ainda, se pá conseguiria uns 10 com o que tinha na Poupança da Cláudia, seu salário do mês e a venda da máquina e da televisão. Agora 25? Nem fudendo...

- Seu Paulo, pelo amor de Deus – implorava Wesley – o senhor sabe que eu dou um jeito, sou trabalhador, eu vou te...

- Porra de trabalhador, o caralho, seu nóia! – Paulo exclamou, enquanto desferia chutes na boca do estômago e na cabeça.

A sessão de espancamento não foi necessariamente longa. Para quem executava pareceu até relativamente breve. Já para quem recebia, estava começando a ficar difícil traçar o tempo das coisas. Em algum momento, a dor das pancadas parecia assumir outras formas. A cada chute na cabeça mal defendidos com os antebraços, a sensação de estar atordoado, um tipo nebuloso de impressão se instalava e parecia que Wesley iria cair novamente naquela cama de onde havia sido arrancado.

Com a vista nebulosa e a cabeça flutuando como um balão, Wesley percebia que entre um rompante e outro conseguia se apegar a algum fio de consciência conforme percebia o tilintar de um, dois, três dentes quicando a sua frente, no chão casquerado e, agora, avermelhado.

- Taí, ó! Essa cambada é burra demais... Agora além do preju no bolso, cê vai ter de consertar essa boca, seu viado! Hahahahaha –  Paulo gargalhava satisfeito.

- Ô, Seu Paulo. Calma aí. O cara tá apagando. A gente não preparou direito a cena. Se ele empacota vai dar B.O. – dizia o Cabo, apontando pra poça de sangue que envolvia o corpo retorcido e encolhido do rapaz.

Paulo tomou uns dois segundos demorados olhando e sentenciou:
- Tá bom, tá bom, Matias... Tô achando que a gente tudo é que tá ficando mole mesmo, viu, puta que pariu... Que que a gente já num fez por muito menos que isso? Pega esse filho da puta e leva lá pra cozinha. Vamo acertar os termos do serviço dele.

- Júlio, me joga um pano de chão aí e me dá a minha toalha. Tá em cima da mesa. – ordenou para o outro homem dentro da casa.

Com uma mão pegou a toalha, limpou o suor  e com os pé direito esfregou duas vezes o pano jogado no chão, como que fazendo menção para Wesley esfregar.
-  Vai neguinho, passa esse pano aí logo, tá ali a cândida. Não demora senão vamo chegar tarde e você não vai gostar se a gente ficar mais do que deveria hahaha – soltou um riso interrompido por uma tragada no cigarro.

Wesley fez o que pôde e, sem alguns dentes, sangrando pela boca e com todas juntas doloridas, esfregou, pediu outro pano, enxaguou e fez menção de terminar.

Paulo, cuja fruição da cena só não superava seu deleite pelo cigarro enquanto observava, jogou a bituca no terreno da frente, deu um sorrisinho e determinou:

- Matias, Julio, passa uma toalha na cara desse digníssimo senhor e vamo fazer o recolhe. Se eles se comportarem, não tem esculacho.

Os dois brutamontes, praticamente arrastando Wesley, limparam seu rosto, jogaram-no no sofá e, depois de lhe servir um copo d’água, mandaram-no sair do barraco e entrar na van preta e insufilmada.   

- Nós também somos civilizados... – comentou Paulo, com sarcasmo – você acha que vamos deixar um pai de família chegar sujo e com sede pra ver sua família?

O frio na espinha que Wesley tinha sentido ao reconhecer Matias retornara, mas, dessa vez, não era como uma pontada, tinha se tornado constante, numa mistura de frio com náusea.
Os passos do sofá daquele barraco decadente até a Van pareciam contidos por uma tonelada. Wesley pensou em tudo que podia fazer.

Quis agir como aqueles personagens de filme de ação que com aquele ferro apoiado do lado da porta poderia esmagar a cabeça de todos aqueles amaldiçoados e se livrar do problema.
Passou pela porta e o delírio assumiu outras feições.
Será que conseguiria correr, pular o muro e, pelo caminho entra os barracos despistar os captores? Daria tempo de chegar até a Alice antes deles?  E a Fátima? Ela não iria largar a casa toda pra fugir. Com certeza arrumaria um escândalo...

Quando percebeu, estava dentro da Van, sentado no meio entre os dois capangas, incapaz de pensar com clareza... incapaz de agir.
De súbito, enfiaram um saco preto em sua cabeça e tudo ficou preto. Não conseguia distinguir o que falavam Paulo e o motorista. Os captores ao seu lado pareciam quietos, mas faziam questão de vez ou outra dar uma cotovelada de alerta, seguida de gargalhadas, para lembrar Wesley a não tentar nada.

Uma freada brusca e o carro parou. Para Wesley, não havia se passado muito tempo, mas já estava escuro e não conseguia enxergar nenhuma luz subindo por baixo do saco preto.

Uma das portas abriu com barulho violento, seguido da ordem:

- Vai, filho da puta! Desce e caminha tranquilo, sem fazer escândalo. – disse Júlio, que parecia mais violento que Matias, indiferente, saindo pela porta do outro lado.

Ao levantar do banco com as mãos firmemente seguradas pelo capanga, Wesley pensou que iria desmaiar novamente. Estava de frente para sua casa. O portão de ferro estava entreaberto e a sala iluminada. A porta de casa deixava sair a luz e sombra de alguma figura em pé. Ao se aproximar, reconheceu a bota de Paulo enquanto subia os olhos e via Fátima e Alice abraçadas, no canto de um sofá, com uma expressão de horror e choro.

- Que porra é, essa?!! O que vocês querem? Tem um monte de vizinho aqui do lado, eu vou chamar a p...
- Olha aqui, piranha, faz isso que a gente volta e te apaga quando for levar essa quenguinha pra escola, ou quem sabe quando voltar daquela lanchonete de merda que você trabalha, tem tanto terreno baldio no caminho... – Paulo disse, calmo; perturbadoramente calmo.

 Fátima arregalou os olhos e abraçou Alice firme, enquanto pedia para ela segurar o choro e dizer que tudo ia ficar bem.

- Esse é mais um exemplar desses vagabundos que se acham espertos, minha senhora. Ele deve se achar mais esperto ainda, porque tá tentando foder com polícia, né? Você não queria a Polícia? Pois a gente tá aqui!
- O negócio é o seguinte – continuou Paulo –, seu maridinho tá me devendo 25 conto, com juro e correção, claro. Nós vamos ter de dar um jeito dele me pagar isso e vai ser hoje. Como podemos começar esse adiantamento?

Paulo, então, realizou uma calma varredura visual pela sala e determinou:
- Vai cambada, olha aí o que esse putos tem pra gente levar.

Os dois capangas se levantaram, encostaram a porta da frente, fecharam a cortina e começaram a abrir gavetas, chutar móveis, revirar todos cômodos.

Wesley tentava balbuciar alguma coisa para Fátima:
- Abor... Eu falei que pagava, vamo vender a máquina...

Fátima, percebendo que Alice começava a se render ao desespero, olhou com raiva para ele e virou a filha, comprimindo seu choro contra o peito e o sofá, enquanto a pilhagem continuava.

A pilhagem ganhava tons jocosos, um gozo sádico, com Paulo e Júlio passando vez ou outra pela sala com roupas do casal colocadas por cima do corpo, gargalhando, bebendo as cervejas que restavam na geladeira e jogando qualquer coisa de valor em duas malas. Dois relógios, a caixa de correntinhas da mãe de Fátima, um maço de dinheiro encontrado no colchão, a máquina. Nem as parangas que wesley guardou lá em cima do guarda roupa ficou pra trás.

Enquanto arrancava os cabos detrás da Televisão na sala, num lampejo de revolta Fátima comentou, ácida e amarga:
- Cês são uns covardes do caralho... com minha filha aqui no meio de tudo, roubando minha casa, polícia é essa bosta mesmo.

Wesley arregalou os olhos, olhou pros lados e viu os três homens, cada um em um canto, da sala. Paulo, ajoelhado, com cigarro na boca e as mãos atrás da TV, sorriu:
- Haha.... E cê acha que só isso paga o valor? Pfff.... - comentou, enquanto continuava a tirar a TV, o sistema de som e os eletrônicos, um após o outro.

Fátima percebeu que no batente da cozinha um homem estava encostado, olhando a situação. Era Júlio. Enquanto o chefe tocava o saque, ele mordia os lábios, coçava a cabeça, olhava pros lados e, vez ou outra pra Matias, de costas, fumando um cigarro na janela do quarto ao lado.

Wesley percebeu algo estranho e, antes que pudesse falar algo, Matias, decidido, seguiu para o sofá. Seus olhos arregalaram.

- É Paulão, 25 conto é coisa. Que cê acha da gente dividir meia horinha, cada? Dá pra pagar pelo menos a visita. Umas 3 ou 4 vezes, mais esses móveis e tá tudo pago.

 Paulo sorriu, mas ignorou, continuando a organizar a mala e vasculhar a sala.

Júlio, então, de um salto, caiu ao lado de Fátima e ao seu lado, balbuciou alguma coisa, olhou para Wesley e disse:
- Vai senhora, manda essa menina pro quarto. Alguém aqui vai ter de aguentar o tranco nessa família.

Tudo ficou vermelho. Desa vez, Wesley não pensou nas alternativas. Era como um ponto final. Um basta. Em algum momento, em algum lugar, ele sabia que chegaria esse momento. Não imaginou que seria nessa situação, nesse lugar, nesse momento. Todos os músculos de Wesley gritaram um grito ancestral. Fugir ou correr. Por tantas vezes fugiu, mas agora parecia inescapável, tudo lhe levava a agir.

No sofá, Fátima olhava rigidamente assustada, colocando sua filha detrás de si, enquanto Júlio virou-se para ela e começou a se aproximar. Uma mão de distância no sofá, um braço de distância, até que suas mãos empurraram a filha para o chão e Júlio tocou-lhe os seios. Um berro saltou sua garganta e a filha, caída ao chão, gritou.
Paulo parou por um instante e correu até a criança:
- Não berra, caralho! – tapando sua boca.

Tudo pareceu muito lento para Wesley, transcorrendo como um filme. Sua reação, um comando de agir, pular em Júlio, esganá-lo com as próprias mãos. Depois deixar ver. O que lhe importava era aquele mero gesto, alcançá-lo, reagir.

Em um pulo ficou de pé, o que atraiu o olhar imediato de Júlio. Paulo, segurando a boca da criança, também virou, ambos mirando atentamente a decisão do rapaz. Tudo se passou em frações de segundo. A cada uma delas, o corpo de Wesley se aquecia. Sentia o braço enrijecer, o calor subir seu peito, o frio tomar a barriga, suas pernas endurecendo fazendo seu passo seguir. Antes de completar o primeiro passo, alguma coisa estranha, súbita, avassaladora, começou a lhe ocorrer. Uma pontada forte no peito, seguida do turvar de sua visão. Sua boca seca começou a formigar. Esboçou um berro mas, tudo que sentiu foi o ar saindo de seu peito e, estranhamente, começava a sentir que se abaixava. Como dissemos, tudo pareceu demorar demais. Foi saindo dos olhos de Júlio, olhando seu peito, os joelhos, a mesa da sala, até terminar fixo nos olhos vidrados de Fátima...
“Socorr....-----"

E então tudo ficou preto.

Wesley abriu seus olhos e estava deitado em uma cama macia, com um cobertor marrom por cima e um travesseiro que parecia ser o seu. Era dia, novamente.
Aos poucos foi recobrando a consciência e percebendo que estava em seu próprio quarto. Num susto gritou “NEGA!!!”.

A porta do quarto abriu abrupta e por ela entrou Anderson, seu irmão caçula.

- Calma Wes, nóis tamo aqui. Tá tudo bem agora.
- O que aconteceu? Cadê a Fátima? Os cara tavam abusando dela mano!
- Calma mano, segura. Ela tá na casa da mãe com a menina. Você tá dormindo há dois dias. Espera aí, que nós vamos pegar um negócio pra você comer.

Wesley se sentia deslocado. Não lembrava de mais nada depois do apagar e, pra ser sincero, não sabia porque apagou. Durante os poucos minutos que seu irmão levou para trazer alguma coisa, fantasiou o que poderia ter acontecido. Imaginou que sua decisão de ir pra cima de Júlio foi respondida com a agressão que lhe fez apagar. Imaginou que havia mordido a garganta dele, surrado o vagabundo até a vizinhança chamar os meninos ou a polícia e, como estava num frenesi, pode ser que não lembre de tudo. Tentou forçar na mente, mas a única imagem que lhe vinha era a de terror de Fátima sendo agarrada.

- Os caras vazaram mano. Pelo que a Fátima falou, na hora que um dos lixos tentou coisas ela, começou uma treta entre eles. O cara que tava no quarto parece que viu a cena foi pra cima. Enfiou o cigarro no olho do outro e começaram a rolar no chão da sala. Nisso o tal do Paulo entrou no meio e só conseguiram parar ele quando deu um tiro na perna de um dos malucos.
- Qual?
- O que tava tretando com o Jack. Ela falou que você ficou o tempo inteiro sentado, porra! Os caras tavam abusando da sua filha e mulher, mano. Ela falou que você levantou e ela achou que ia fazer alguma coisa, mas do nada desmaiou e ficou lá, que nem barata morta, no meio dos dois rolando.
- .... mas como eles saíram fora?
- Depois do tiro, a vizinhança toda veio correndo pra porta e eles saíram. O Paulo carregou o maluco do tiro até o carro e o outro saiu correndo a pé, xingando e  com a cara sangrando.
- Caralho, mano... me desculpa...

- Essa fita cê vai ter de resolver com a Fátima, Wes. Pra que pegar dinheiro com meganha, porra? Cê tá precisando de algum auxílio, a gente dá um jeito, mano. Era pra droga? Que porra é essa? Você já ficou indo lá no caps toda aquela cota.. vai voltar pra isso?

- E outra, eles voltaram ontem aqui na porta. A gente decidiu pegar um cano com o Totó e ficar no aguarde. Esse jack é cabo da polícia, mano. Maluco colou aqui, com um tampão no olho. Ficou do outro lado da calçada, fitando a gente, esperando. Depois vazou. A mãe falou que viu ele na porta da escola da menina também. Essa semana ela vai ficar e casa....

Anderson continuou falando mais algumas coisas até perceber que Wesley tinha voltado a apagar. Alguma coisa estava se operando naquele homem.

Mais um dia e ele estava de pé, mas já não era o mesmo.
Aquele jeito solto, mesmo que medroso desde cedo, tinha dado lugar a um outro cara. A vigilância da família continuou, mas Wesley não parecia se interessar muito.
Após 3 dias do ocorrido falou com a mãe para ver as meninas. Se fechou num quarto com as duas e, pelo que a mãe viu, saiu de cabeça baixa, olhar distante, parecendo querer chorar, mas sem muita lágrima.

Pela porta, Fátima de relance comentou baixo, como se falasse a filha e a si mesma, esperando a mãe ouvir, “acabou...”

Não se sabe bem o que se passou antes disso tudo, mas o episódio foi suficientemente marcante para ela decidir que não podia mais ficar.
Acreditava que já era difícil demais se defender da Vida estando a dois. Sozinha não podia aguentar. Um mês depois de tudo, pegou a filha, um saco de roupas e voltou ao Ceará pra casa do Pai.

Nesse mês, Wesley não parecia se importar muito.
Acordava cedo, fazia o café, ia para a loja e, quando se esperava que voltasse, não retornava. Frequentemente voltava 5 ou 6 horas depois do horário de costume.

Anderson, que sempre passava pela porta de sua casa a noite as vezes o via, chamava e recebia um aceno cansado, seguido da porta fechada. Isso ou o observava cambaleando até a entrada.

Após a partida, tudo ficou mais drástico.
Os episódios começaram caricaturescos. Dona Lúcia contava como, certa madrugada ouva estrondos na parede da casa vizinha, a de Wesley. Levantava-se e, de frente a janela, via o rapaz nu, de olhos estatelados, caminhando pra um lado e pro outro, até chegar ao portão de ferro e, aparentemente, se tocar do que estava fazendo. Os episódios se repetiam com regularidade.

Preocupado, Anderson passou no trabalho e perguntou sobre o irmão.

- Ele tá bem mais quieto mesmo. Ficamos sabendo do que aconteceu. Céloko. Esses vermes fodem com a cabeça de qualquer um. Era um menino falador, até meio folgado, mas agora ele tá estranho, cheio de tique. Outro dia o Jeremias chamou a atenção dele, por que tava falando sozinho que nem maluco. Ele demorou uns segundos até perceber que tava tomando bronca. Tipo no mundo da lua, sabe?

Nesse dia, alguns meses depois de todo ocorrido, alguma coisa tocou Anderson e o fez pensar no irmão.
Achava que o papo da dívida já tinha miado, mas não podia deixar ele ali, largado, depois de perder a vida toda por causa desses vermes. Tentou sair mais cedo do trabalho, mas sua própria filha ficou doente e teve de levá-la ao hospital do bairro.

Wesley não contou, mas, uns dois meses depois da partida das meninas, ele voltou a frequentar o Caps.
Tinha tido algumas recaídas e precisava de ajuda pra largar de novo a pedra.
Não era só isso. Ele estava vendo algumas coisas estranhas, também.

Não conseguia tirar da cabeça o sorriso de Júlio e aquela cena dele mesmo, de costas numa cama, sem conseguir se mexer. Por meses, pelo menos uma vez por semana, acordava com essas imagens em sua cabeça de madrugada, suando ou as vezes pelado, de frente pro portão da própria casa. Havia contado tudo isso para os assistentes e médicos e estava tomando três comprimidos por dia, um pra dormir e outros pra “pensar mais devagar”, como o médico tinha lhe dito.

Nesse dia, no entanto, saiu do CAPS e decidiu tomar uma dose.
Melhor uma Ypioca do que uma pedrada, pensou. Se esqueceu que tinha tomado o comprimido. Ali, no canto do balcão do bar, começou a sentir uma certa náusea e abaixou a cabeça, pra tentar fazer tudo parar de girar.

Não muito tempo depois, sentiu um tapa e levantou a cabeça devagar para olhar. Um rosto familiar, exceto pelo olho branco, cego. Percebeu que era Júlio e seu sorriso amarelo, sinistro, sádico, asqueroso.

- É isso aí, pilantrinha. Essa semana vim mais cedo... meio que pra agradecer por cumprir nosso trato. O Paulo disse que agora, se você quiser, tem crédito com ele, já que pagou tudo certinho Hahaha.
- Eu...paguei tudo ontem, fiz um pix pra ele...
- Tô sabendo. Bom, negócios, negócios, prazeres a parte, né mesmo? Tá avisado... se precisar, estamos à DISPOSIÇÃO.
- E ah... mesmo os prazeres estando a parte – disse enquanto se virava e caminhava para a porta do bar, se você botar pra jogo aquela vadia, eu consigo até ampliar a margem pra você, tô no ramo agora hahaha... ô teta gostosa, viu...

A feição envelhecida de Wesley se torceu. Aquele sentimento familiar retornava... Peito quente, barriga fria, mãos rígidas, o coração batendo.

Wesley levantou. Viu seu punho se fechar e, num piscar de olhos, acertar a cabeça do homem. Dali em diante o frenesi se instalou.
Sentia os dedos batendo em superfícies duras, sua cabeça ser golpeada uma, duas, três vezes, mas sem conseguir ver nada claramente.

Um tom avermelhado tomava sua vista e, por detrás do véu escarlate, aquele sorriso, o sorriso maldito, um sorriso que queria apagar com tanto ódio que sentiu sua mandíbula se fechar. Mordia e rasgava, sentindo algum líquido, não sabia se seu ou dele, escorrendo abundante pela boca. Conseguia apenas ouvir gritos, de início indistinguíveis, como grunhidos, até tornarem-se um pouco mais reconhecíveis, baixos, disformes “Paraaaa, cê tá maluco,, cê vai mat---“.  

Com sua boca sentiu puxar alguma coisa e, entre pancadas e tropeços, senta um prazer indescritível.
Parecia livre, finalmente. Agiu e, na ação, sentia-se pleno, de forma tão jubilosa que a visão turva e avermelhada e seu corpo rígido e endurecido foram mudando e tomando a forma de um choro copioso. Desabou e então tudo se tornou escuro. Escuro e úmido. Sentiu um cansaço gigantesco. Seu corpo pesou, seus braços caíram e as lágrimas verteram dos olhos, lavaram a pele, escorreram pelo peito...

Até que as vozes voltaram mais agudas, imperativas. Abriu os olhos e olhou para suas mãos. Seus dedos estavam tortos. Sua boca continha um gosto forte de metal, cheia de líquido. Percebeu que era sangue. Tentou enxugar os olhos, mas a vista embaçou. Olhou para o balcão a sua frente. Não parecia o do bar, mas era um balcão.
Nele, apenas uma cabeça, aquela cabeça maldita, aquele sorriso perverso olhando para ele, sorrindo, ou mesmo rindo, numa cena grotesca. Agiu novamente. Seus braços não tinham força e começou a sentir a dor lancinante dos dedos.
 
Só lhe restava a própria cabeça. Fechou os olhos e golpeou com toda a força. Sentiu o estrondo e levantou novamente. Com um olho entreaberto, viu novamente aquele sorriso. Um segundo golpe, mais feroz. Sentiu que abrira algo em sua testa. Agora tinha esmagado aquele PM desgraçado! Tinha batido muito forte! Só faltava confirmar.

Cerrou os dentes e numa fúria primitiva percebeu que não estava sentindo nada e, portanto, não deixaria mais aquele sorriso dominar sua mente. Lançou o terceiro golpe mas, antes de acertar, seu corpo foi arremessado para o lado.
 
Em meio ao caos, sorria e gargalhava. Quando conseguiu entreabrir um dos olhos, viu que não havia mais nada na bancada, apenas uma poça de sangue e uns pedaços estranhos de algo que parecia carne. Devia ser da cabeça do meganha.

- Animal, filho da puta, esmaguei ele! Viu Fá, esmaguei esse filho da puta! Cê tá vendo o papai lice???!!

A próxima coisa que sentiu foi seu corpo pressionado contra o chão e uma picada forte em sua perna direita. Enquanto berrava sua vitória, Wesley se debatia e olhava para os cantos da sala, mas não parecia ver nada.

Não percebeu os 4 enfermeiros em cima do seu corpo.  Nem a atendente que parecia ter as mandíbulas seguradas pela mão. Estava chorando e não conseguia falar direito.
Uma mulher de jaleco, parecia uma médica e, com a seringa nas mãos, tinha uma expressão incrédula enquanto ligava para alguém. Os GCM’s, então entraram, rendendo o rapaz.

A gritaria foi tomando a forma de murmúrio. Os batimentos foram diminuindo. A tensão se dissipando e, enquanto adormecia pelo efeito do anestésico, com o sangue escorrendo pela deformação em sua testa brotava em sua feição um sorriso estranho, vidrado, vibrante e fixo. Adormeceu com aquela expressão.

Do outro lado da rua, Júlio estava parado. Olhava preocupado para os lados, até que viu a viatura da PM se aproximar e acenou. O carro parou, se cumprimentaram, bateram continência e Júlio deu uma roçada pra baixo e pra cima no peito com os metacarpos da mão direita.

Uma testa franziu.
Num movimento rápido Júlio estendeu a mão para o fardado e... sorriu.
E assim, aquele mesmo sorriso perverso, como num espelho, viu-se.