segunda-feira, 3 de junho de 2019

Debate com Jones Manoel: sobre a Coréia do norte e confusões intencionais.



Recentemente nos deparamos, através do site da Editora Boitempo, com um texto - ou mais corretamente, uma apologia - em defesa do regime e estado de coisas vigentes na Republica Popular da Coréia, mais conhecida em terras ocidentais como Coréia do Norte.

Tal apresentação do esforço de Jones Manoel, youtuber e militante do PCB, pode soar polêmica e, com justiça, no decorrer do debate proposto por estas linhas, esperamos que seja, de fato, assim encarada.

Entre numerosas citações pirotécnicas, com o objetivo de dotar de credibilidade sua análise e um debate moral a frente no início, colocando em segundo plano a análise marxista das relações de produção, políticas e sociais existentes na República da Coréia, Jones resulta num stalinismo revisitado e condescendente com todas as contradições desta nação complexa e distante para a análise dos trabalhadores e revolucionários brasileiros.
 
Salta aos olhos a dedicação com que Jones, tecendo sua narrativa e conduzindo o leitor ao erro, tenta estabelecer a crítica tanto as pessoas em geral, como a esquerda em particular, utilizando uma linha acessória, moral e política, para isto.

Para o autor, o problema da visão dos marxistas brasileiros (e, mais amplamente, ocidentais) é que ela é deturpada e conduzida pelos, evidentemente influentes, monopólios midiáticos, que não apenas moldariam nossa desinformação sobre a Coréia do Norte como nos levariam ao “desencanto infantil” a partir do surgimento das primeiras dificuldades dos povos em “erguer sua libertação”.

Praticamente um terço de seu texto é gasto em citações, dados e cifras que, se esquivando as questões fundamentais, relatam não apenas o abandono moral, o desencanto de uma esquerda que não valorizaria a luta “nacional e anticolonial”, como a situação de dominação  a que as pessoas em geral e os marxistas ocidentais em particular, estão sujeitos diante do controle do fluxo de informações exercido por 3 monopólios midiáticos dos EUA, Inglaterra e França.

Estabelecida sua base argumentativa (e, de certo modo, sua visão de que seus leitores seriam no melhor dos casos desinformados e, no pior, idiotas preguiçosos) Jones segue para a definição das condições de vida na Coréia do Norte.
Que o mercado de informações internacional, é monopolizado por estas quatro agências citadas (Associated Press, FrancePress, Reuters), não é nenhuma novidade.
No Brasil, a compreensão dos efeitos deletérios deste tipo de monopólio, em época em que a “pós-verdade” é uma arma política de massas na construção de falsas narrativas através de redes sociais, tem aumentado.
Além dos meios alternativos de fake News, os meios clássicos da burguesia Brasileira, como Globo, Estadão e Folha continuam firmes e moldam notícias ao sabor dos interesses burgueses aos quais se associam.

É, portanto, um fato que a República Popular da Coréia sofre uma campanha de desmoralização, demonização, falsificação enorme, como sempre foi o caso de toda e qualquer experiência revolucionária nos 170 anos de luta dos trabalhadores contra o capitalismo.
Certamente não é apenas (e prestemos atenção nesta palavra) por esta via que um trabalhador consciente e crítico e, mais ainda, um marxista revolucionário, vai buscar suas informações e, principalmente formar seu juízo.

Todavia, localizar a ojeriza de amplos setores populares e de uma maioria entre os marxistas revolucionários a uma entrega acrítica as informações dos monopólios ou a um suposto ocidentalismo abstrato que não reconhece as “particularidades” coreanas é de uma superficialidade e prepotência exageradas.

Em sua argumentação o aspecto histórico da formação do Estado da república coreana, os traços econômicos e a análise das relações de produção - o ABC para um marxista - são ignorados por Jones.
Resta apenas a apologia e o apelo a comoção diante dos dados sobre os, evidentemente, criminosos danos realizados pelo Imperialismo dos EUA, através do bloqueio econômico atual ou da guerra no passado.

Desse modo, é preciso dizer que existem, sim, opiniões embasadas, econômica, política e ideologicamente, por parte de marxistas, sobre o processo da Coréia e do que chamamos de Estados Operários Deformados.

Onde está e o que é a Coréia, afinal?

A República Popular da Coréia é um país isolado.
Esta é uma verdade incontornável que impõe, deste modo, uma cautela necessária para definições..

Se por um lado a campanha de desinformações possui seu peso específico e importante na construção de uma Coréia caricaturada e hostil, características próprias de sua formação política e ideologia exercem um papel importante neste isolamento.

A Coréia de 1910 até 1945 era parte, anexada, do império japonês. Apenas após o fim da segunda guerra mundial, com a derrota japonesa através da heróica luta do povo coreano, é que surgiria o que hoje conhecemos como a Coréia do Norte.

Num processo muito parecido, no entanto, com o ocorrido no Leste europeu (com a ocupação e expropriação das burguesias pelo exército vermelho da URSS em países como Estônia, Letônia e Lituânia) ou mesmo na Alemanha (com a divisão entre Berlim oriental e ocidental), após tentativas de reunificação terem falhado (mas terem seguido por décadas mesmo após a guerra), em 1948 a península Coreana foi "dividida" entre os EUA e a URSS, durante a guerra fria.

Um guerrilheiro chamado  Kim IL Sung, com o apoio logístico e militar soviético e chinês, a frente da luta contra o sanguinário ditador imposto pelos EUA na Coreia do sul, Syngmann Ree, foi lançado ao poder. 

Em 1950, após uma invasão do Norte diante da pressão das tropas dos EUA, maquiadas de tropas da ONU, estacionadas no sul, tem início a guerra da Coréia, um enorme conflito que só chegou a um impasse após a entrada das tropas chinesas em apoio ao norte, o que, por sua vez, levou a um armistício em 53, mas nunca a uma assinatura de fim da guerra.

O resultado deste processo, cujos pormenores não são nosso objetivo expor, foram, de fato, a eliminação de cerca de 30% da população, bombardeios, destruição de terras e fábricas e um bloqueio econômico feroz por parte dos EUA e das potencias capitalistas.

Por outro lado, no norte, a antiga burguesia foi expropriada, as fábricas, terras e meios de produção em geral foram estatizados e se estabeleceu um governo do Partido dos trabalhadores coreanos, o qual, até hoje, monopoliza o controle da “Frente democrática para a reconstrução da pátria”, com mais dois partidos. Toda representação política só pode se dar por esta frente.

A partir de 1955 o autoproclamado “líder supremo”, terminologia bastante comum aos autocratas dotados do beneplácito stalinista, começa a desenvolver a chamada “ideologia Juche” que em 1977, oficialmente, substitui o marxismo, sob todos os pontos de vista e, principalmente, o simbólico.
Saem quaisquer referências visuais ou intelectuais a Marx e Lênin – e até mesmo ao patrocinador, Stalin -, entra o culto a Kim Il Sung e sua família.

Isto inaugura o culto a personalidade – outra excrecência antimarxista inspirada no Stalinismo - que dura até hoje, baseado na doutrina da adoração aos líderes e em sua infalibilidade, ensinado como doutrina escolar desde a infância.
O Juche, como ideologia, por outro lado, se define como, literalmente, “autossuficiência” e, sendo assim, professa pela autossuficiência econômica e bélica, num país montanhoso em que apenas 15% das terras são fertéis (e ainda conta com um feroz bloqueio imperialista) para alimentar seus 26 milhões de cidadãos. Somado a ele, a ideologia “Songun” é imposta pelo filho do ditador original e define que “os militares vem antes de tudo”, estabelecendo as prioridades do regime.

Após o fim da URSS, em 91, a Coréia do Norte, num processo parecido com Cuba, sofre com os mesmos males sofridos pelas nações na esfera de influência – principalmente, econômica - da URSS, passando por uma grave crise de produção (vide sua dependência total da indústria e materiais da URSS) e apostando no fortalecimento do culto a personalidade e das forças militares como via de tentar manter o regime político de pé.

No início dos anos 2000 se inicia a implementação de medidas de economia de mercado (capitalistas) entre as duas Coréias para a criação das Zonas Econômicas especiais de Kaesong, Kumgang-San,Rajin e Shinuiju, próximas da zona militarizada de fronteira¹, divididas entre áreas de turismo e de produção industrial, onde estão mais de 124 empresas sul coreanas e 50 mil trabalhadores norte coreanos trabalham entregando seus salários ao Estado e recebendo uma fração minoritária deste².
 
Diante de tal explicação histórica e das principais definições sobre de onde vem e como se define a Coréia do norte, temos muito mais elementos pra definir o que é a República Popular.

Trotsky, o dirigente mais destacado da revolução russa ao lado de Lênin, dedicou especial atenção a deformação burocrática da URSS nos anos 30 em vários artigos e sua grande obra “a Revolução Traída” e, posteriormente, foi seguido por marxistas do pós guerra que aprofundaram suas análises sobre os processo de formação dos Estados Operários deformados decorrentes das ocupações do pós segunda guerra.

Para os marxistas, a definição do caráter de classe de um estado se dá de maneira científica, principalmente levando em conta um critério amplo: Como se produzem os produtos – e as riquezas - nesta sociedade? Ou seja, quais são as relações de produção deste estado?

Sob o capitalismo, nunca é redundante dizer, a anarquia domina a economia; tudo e todas as quantidades do que é produzido não vêm de um plano baseado nas necessidades das pessoas, mas no desejo de cada grande capitalista em aumentar seu lucro. Da mesma forma, no capitalismo, a classe dominante é a dos donos dos meios de produção, que com a força do SEU estado, controlam as terras, fábricas, ferramentas, matérias primas e obrigam a enorme maioria do povo, sem qualquer meiod e produção, a trabalhar vendendo sua força de trabalho.

Um Estado operário, então, para os marxistas e, claro, como consequência direta das posições do próprio Marx, é a antítese, o extremo oposto a este estado capitalista, que nada mais é do que uma cobertura, cujo objetivo é defender e articular os negócios dos grandes bancos, industriais e latifundiários.

Para eles, um Estado operário se define como aquele em que a propriedade é coletivizada, ou seja, a burguesia foi expropriada; em que a economia é planificada democraticamente pelos produtores segundo suas necessidades; em que o comércio exterior é monopolizado pelo Estado, ou seja, a economia do país não é refém das peripécias das grandes corporações. Estas são as bases econômicas de um estado de transição para o socialismo.

Tais idéias, para alguns membros da esquerda, podem parecer antiquadas, mas da ciência econômica não há escapatória.
As decisões econômicas são, apesar de ideólogos burgueses tentarem maquiar, políticas e seus efeitos também.
Um estado que não possui estas características não inicia a construção do socialismo, não porque não se queira, mas porque não existem condições econômicas para tal.

Esta é a via para suprir o Estado dos operários, construído pela revolução, do capital necessário para a industrialização e, assim, para criar a abundância, ou seja, o avanço das forças produtivas para deixar de produzir para o lucro e passar a produzir para garantir a necessidade das pessoas.
Fora destes critérios, fora da busca pela abundância e da libertação da necessidade imposta pela economia capitalista, ainda domina o mesmo mercado capitalista, a anarquia econômica, a divisão de classes entre donos dos meios e despojados dos meios de produção, patrões e operários, em essência, dominam os grandes magnatas da burguesia.

Diferentemente da própria Rússia, China e das nações do leste europeu, onde a restauração capitalista já ocorreu e o que existe é de um lado um Capitalismo de Estado feroz e de outro repúblicas liberais capitalistas semidemocráticas, felizmente, o caso da República Popular da Coréia não parece estar resolvido.

A Coréia do Norte, fruto da imposição das bases econômicas socialistas “por cima”, via apoio soviético e não como um processo que foi construído desde baixo, pelos trabalhadores organizados democraticamente, como foi o caso clássico da revolução Russa, é um Estado Operário Deformado, em que, apesar de ter se dado a expropriação da Burguesia e seguir com a maior parte do comércio monopolizado pelo Estado, nunca viu uma verdadeira planificação democrática da economia.
Pelo contrário, são notáveis os relatos, de direita e esquerda, de observadores presenciais de ambos os campos, sobre as inspeções que a burocracia do Partido dos trabalhadores da Coréia realiza nos campos e fábricas e que, de uma hora pra outra, reorganizam a produção segundos os interesses dos funcionários de alto escalão, sem qualquer meio de controle e participação dos trabalhadores nestas decisões.
Kim Jon Un, aliás, é conhecido por realizar estes giros bruscos, destinando, recentemente, milhares de trabalhadores para construir um complexo turístico de esqui, posteriormente paralisado, visto a falta de procura de turistas...

Também é comum, nestes relatos, a existência do que Jones chama, de maneira condescendente como “privilégios burocráticos”, que vão desde as viagens internacionais, até acesso a restaurantes, alimentação abundante, carros e resorts de luxo, pelos funcionários do governo, oficiais do exército e do alto escalão, demonstrando que, longe de serem “menores privilégios”, a economia da Coréia é monopolizada por uma casta burocrática que se ergue acima dos trabalhadores, gozando de direitos pagos com seu trabalho e que ela mesma veta a estes.

Mas e a política? A confusão intencional entre Regime Político e Estado

Jones parece não conseguir resistir a um traço particular de personalidade argumentativa. Sempre tenta antecipar os argumentos de seus opositores cometendo um “sincericídio”. É o caso de quando diz que “
O leitor pode pensar que estou falando das conquistas sociais mas ocultando a dimensão política do país”.

Após passar boa parte de seu tópico em que deveria definir a Coréia do Norte  (sem no entanto abordar em nenhuma linha suas condições econômicas e relações de produção, como se se tratassem de obviedades) exaltando conquistas sociais, Jones faz uma definição rigorosamente precisa do que está fazendo.

Algo claramente confirmado nas linhas seguintes, quando expõe de passagem e acriticamente a ideologia Juche, menciona um autor para argumentar que as instituições Norte-coreanas são republicanas, que por conta do bloqueio sofrem uma mentalidade de “bunker” e, por fim, rechaça, tão preguiçosamente quanto os que critica, quem define o regime político como um tipo de Stalinismo burocrático, negando inclusive o irrefutável culto a personalidade na Coréia.

Para fechar com chave de ouro, Jones invoca a Esfinge indecifrável que para os menos críticos pode servir de cala boca, sobre as particularidades da fusão do “confucionismo, cultura asiática e marxismo”, como escudo contra as vozes divergentes.
O fato é que no regime político da Coréia do Norte o fazer político é monopolizado por uma única frente – a “Frente democrática para a reconstrução da pátria” – e dentro dela pelo PTC.
 
As eleições existentes ocorrem a cada 5 anos e elegem a chamada “Assembléia Popular Soberana”, que se reúne apenas duas vezes ao ano e delega todas as prerrogativas do Legislativo e executivo – fundidos no país – a um Presidium.
Este, no entanto, muito mais reduzido e controlado pela alta cúpula da frente mencionada é votado indiretamente, ou seja, não pelo povo mas pela Assembléia e é o responsável por toda a tomada de decisões, a exceção dos dois dias por ano em que se reúne a assembleia.

De outro lado, o cargo mais importante, de fato, é o de Presidente da Comissão da defesa nacional da Coréia do Norte, cargo criado por Kim Jong IL em 1993 e ocupado por ele mesmo desde então até sua morte, quando foi “eleito” seu filho Kim Jon Um, o atual chefe supremo das forças militares do país e o detentor de todo o poder, de fato.

Sabemos que as formas políticas podem e, usualmente, servem aos interesses dos grupos dominantes. É por isto que não basta a análise formal, para os marxistas, mas a essência de seu funcionamento, os interesses de classe e de casta envolvidos em seu desenvolvimento.

É por isto, também, que deveria causar espanto que um intelectual que tem influência no debate da esquerda, nas redes sociais e se propõe a polêmica, trate o assunto neste nível de superficialidade e, pior, chegue a extremos como dizer que Ditadores sanguinários de países que nunca nem sequer chegaram próximos de iniciar a construção do socialismo, como Khadafi da Líbia, seriam “ditadores”, com aspas e tudo.

A forma política do regime Coreano é uma casca que busca erigir legitimidade para um regime, sim, ditatorial de partido único, em que existe censura, em que visitantes estrangeiros devem ser acompanhados o tempo todo e só ver o que foi cuidadosamente preparado para verem, onde vigora o monopólio do poder decisório por uma casta social, em que o líder supremo emana um culto a própria personalidade e define unilateralmente os rumos da nação, tudo isto dentro de um estado operário deformado, em que há planificação da economia, mas nunca existiu democracia operária, nunca existiu planificação democrática do que se produzir pelos trabalhadores e em que esta casta usufrui de privilégios pagos com o trabalho das massas.

Jones faz uma confusão consciente entre o que é um Regime Político e o que é um Estado,
para, assim, coagir o leitor a um beco sem saída: Ou apoia os dois ou não apoia nenhum!

Esse tipo de manobra, essa sim, preguiçosa, no entanto, não é nova e daqui há alguns anos fará 100 anos.
E ela não tem outro nome que não seja Stalinismo, ou seja, uma maneira de pensar condescendente com as burocracias, que pensa o Estado em oposição e até “apesar” das massas, contanto que traga “conquistas sociais”.

Como uma boa visão stalinista, a máxima maquiavélica de “os fins justificam os meios” se aplica inteiramente. O problema é que, em se falando de marxismo revolucionário, há pelo menos 100 anos sabemos que existe uma profunda “interdependência entre os fins e meios”, ou seja, os fins e os meios não podem se contradizer, sob pena de degenerarem em qualquer coisa, menos em ação revolucionária.
Somos, sim, partidários de uma ditadura dos trabalhadores contra os burgueses sem nenhuma vergonha de dizer: uma ditadura de classe. Mas não somos, os marxistas, condescendentes com a degeneração desta quando usurpa o poder e a participação política da classe que deveria dirigir seu destino. Ainda vigora a máxima de Marx e não a de fidel: "A EMANCIPAÇÃO DOS TRABALHADORES SERÁ OBRA DOS PRÓPRIOS TRABALHADORES."

E é a isto que Jones se dobra quando nos coage a defesa do regime norte-coreano como se isto significasse defender as conquistas sociais.

É preciso sim, nos últimos estados operários do mundo, como Cuba e a Coréia do norte, defender todas as conquistas sociais, inclusive contra as burocracias que hoje dominam o poder político! Estas conquistas não são frutos das particularidades destes países ou da benevolência das burocracias, mas da resistência dos trabalhadores e camponeses que as arrancaram da burguesia e as impedem de desaparecer.
Por outro lado, elas são frutos, também, de uma economia planificada e socializada, ou seja, superior a anarquia da produção capitalista, que obriga as burocracias, como condição de sua existência, a manter uma condição de vida minimamente digna caso contrário podem cair.

Diante destes Estados, as reflexões não são novas. Já na década de 30, diante da profunda burocratização construída pelo Stalinismo (a ala burocrática que tomou o partido comunista russo) na URSS, Trotsky e milhares de revolucionários da Oposição de Esquerda se colocaram a refletir a política para tentar resolver a situação e avançar nas conquistas sociais e econômicas do socialismo.

Do ponto de vista político, propunham uma saída muito clara: As bases econômicas do socialismo deveriam ser mantidas a todo custo. O fim da propriedade privada e o surgimento da propriedade coletivizada dos meios de produção, o fim da anarquia da produção e da sede de lucro da burguesia, eram um avanço rumo ao socialismo.

No entanto, o monopólio do poder político e das decisões por uma casta burocrática e privilegiada, especializada em “gerir a escassez” não apenas impedia o desenvolvimento do socialismo, como impedia o desenvolvimento da revolução mundial e, assim, levariam a restauração capitalista, ou seja, os próprios burocratas tenderiam a se tornar burgueses, a tomar os meios de produção para si e voltar a explorar o povo trabalhador e as riquezas geradas por seu trabalho. Tudo o que, infelizmente, se confirmou ao longo do século 20.

A saída? Apenas uma revolução política, que derrubasse a burocracia e colocasse de pé uma verdadeira democracia operária, onde a administração, as decisões e planejamento da produção fossem feitas pelos trabalhadores produtores, ou seja, pelos conselhos (sovietes) revitalizados.

Isto, no entanto, só faria sentido se a nação encontrasse seu caminho para a revolução mundial: As forças produtivas (terras, fábricas, maquinário, matérias primas, força de trabalho) socializadas de nenhuma nação poderiam sobreviver isoladas e sob a pressão dos países capitalistas.
Somar estas forças produtivas com as de outras nações, através de revoluções que começam nacionais, mas se unificam, não apenas é a única via de obter a abundância necessária para construir o socialismo: é a única forma de derrotar o capitalismo e libertar a humanidade da exploração do homem pelo homem.

Ou seja, É preciso sim defender as conquistas e a qualidade de vida dos trabalhadores e camponeses. Mas isto não se confunde com a defesa de um regime burocrático, ditatorial, baseado na censura e no monopólio decisório.

Sobre isto, sobre o internacionalismo revolucionário, algo presente em todo o marxismo revolucionário desde Marx, mas longe das reflexões dos stalinistas, como se pode perceber, Jones não fala rigorosamente nada.

O capitalismo é mundial, logo, a revolução deve ser mundial.

Não é nenhuma surpresa que Jones, sendo do PCB, tenha este tipo de visão stalinista.
O que surpreende, no entanto, é que tais visões ressoem não apenas em militantes marxistas em geral, mas, inclusive, encontrem o silêncio condescendente de parceiros da dita “nova esquerda” como Sabrina Fernandes, Humberto Martins, a própria boitempo, etc, em pleno século 21.

O autor reclama da preguiça dos detratores do regime norte coreano.
Paradoxalmente, em pleno 2019, diante de uma economia capitalista em crise, nunca antes tão centralizada nas mãos dos monopólios, em que só no Brasil 6 bilionários concentram a mesma riqueza do que 100 milhões de pessoas, Jones acredita ser possível uma revolução socialista “de características especiais” e estritamente nacional e não tira nenhum balanço de TODAS as experiências revolucionárias do século vinte, além de um argumento, este sim, bastante preguiçoso:
Todo esse bloqueio do imperialismo gera deformações e certo nível de burocratização pouco agradável a alguém que defende uma democracia operária. Mas a prioridade quando o assunto é a Coreia Popular, é defender o país do imperialismo”

Agarrado a sua concepção stalinista, Jones segue usando as conquistas sociais do Estado Operário para coagir uma defesa do regime e lança a máxima de Fidel de que “Em uma fortaleza sitiada, toda dissidência é traição”, uma frase interessante para aqueles que, hoje, avançam a passos largos pra uma restauração capitalista das relações de produção em Cuba.

Que a história do único partido operário que chegou ao poder pela via da democracia operária (sovietes que organizavam trabalhadores), o partido Comunista da URSS, outrora partido bolchevique, tenha sido oposta a esta máxima, sendo um partido vivo, com agrupamentos e frações até 1921, nosso sagaz autor trata de esquecer.
Que a proibição de qualquer dissidência tenha se dado circunstancialmente em 21, num cenário de isolamento e guerra civil, mas com o objetivo de ser temporária e dar lugar a um “pluripartidarismo soviético” como defendiam Lênin, trotsky e tantos outros, apenas um detalhe.
Que inclusive a tomada do poder em 1917 tenha sido feita por dois partidos, os SR de esquerda (camponeses pobres) e os Bolcheviques, além de independentes, novamente vem o esquecimento... Que ajuda, é claro, sua máxima stalinista.

Certa vez, em 1919, em plena guerra civil na recém fundada URSS, um autor chamado Bukharin, que não pode ser acusado de Trotskysmo, escreveu junto de outro proeminente ccomunista, Preobrazhenky, um grande manual para ingressantes chamado “ABC do Comunismo”.

Neste manual, aceito e comemorado por todos os revolucionários da heroica geração que tomou o poder em 17, incluindo Lênin e Trotsky, seguindo a linha revolucionária construída desde Marx, afirmam a toda uma geração de novos membros do partido:
 A revolução comunista só poderá vencer se for uma revolução mundial. Se num país a classe operária toma conta do poder, mas nos outros, o proletariado permanece devotado ao capitalismo, esse país será finalmente estrangulado pelos Grandes Estados. De 1917 a 1919 todas as potências imperialistas tentaram estrangular a Rússia dos sovietes.(...)Não puderam porque sua situação interna era tal que deviam temer, elas também, ser derrubadas pelos seus próprios operários.(...) A ditadura proletária num país isolado está continuamente ameaçada se não encontra apoio entre os operários dos outros países. (...) Nesse país a organização econômica é muito difícil porque quase nada recebe do estrangeiro, está bloqueado de todos os lados

A política de bloqueios, invasões e sanções sempre foi a política de todas as nações capitalistas contra a revolução operária, desde a Comuna de paris até nossos dias. Nunca houve nem haverá uma revolução que possa “construir livremente” - como parece desejar Jones - o socialismo, justamente porque nunca existirá o burguês que abrirá mão da supremacia social sem luta.

Por outro lado, seja em Marx a partir de sua análise da tendência do capitalismo em centralizar e concentrar riquezas em poucas mãos, seja em Lênin em sua análise da partilha do mundo pelo imperialismo e do domínio da economia e dos estados pelos trustes e monopólios, contra os quais qualquer revolução teria de se chocar até a derrota total do capitalismo, seja em Trotsky com sua teoria da revolução permanente, em que professa:
- “A revolução socialista não pode realizar-se nos quadros nacionais. Uma das principais causas da crise da sociedade burguesa reside no fato de as forças produtivas por ela engendradas tenderem a ultrapassar os limites do Estado nacional. Daí as guerras imperialistas, de um lado, e a utopia dos Estados Unidos burgueses da Europa, de outro lado. A revolução socialista começa no terreno nacional, desenvolve-se na arena internacional e termina na arena mundial. Por isso mesmo, a revolução socialista se converte em revolução permanente, no sentido novo e mais amplo do termo: só termina com o triunfo definitivo da nova sociedade em todo o nosso planeta.”,
em qualquer um destes, fica evidente o distanciamento de de uma visão marxista pelo autor.

No entanto, longe de um lapso, tal falta mostra a real concepção de Jones.
Uma concepção stalinista, baseada na lógica de “socialismo num país só” e, portanto, nada marxista. Infelizmente, vemos que não tirou balanços dos processos históricos de todo o século 20.

Verdade seja dita, tais erros já receberam o veredito da história repetidas vezes: Seja na restauração do capitalismo na Rússia, na China, na antiga Iugoslávia, no Vietnã, etc.
Seja, também, nas dezenas de revoluções traídas por conta da teoria e prática stalinista, nomeadamente a revolução chinesa de 25 a 27(em que os stalinistas obrigavam trabalhadores comunistas a serem dirigidos pelo partido dos burgueses nacionais de Chiang Kai Chek que, para Jones, tal como Khadaffi, talvez recebesse aspas quando chamado de “ditador”) a ascensão de Hitler ao poder em 33 (já que o stalinismo se negava a frentes únicas e dizia que os social democratas eram “social-fascistas” iguais ou piores que os nazistas), a ditadura civil militar de 64 (quando o PCB se recusou a resistir ao golpe e erguer uma greve geral, armar os trabalhadores e dividir os setores que estavam rompendo no exército, levando a sua ruptura partidária e o surgimento da Guerrilha, além da ditadura), durante os cordões industriais chilenos, durante a revolução espanhola de 30 a 39 (quando os stalinistas condicionavam enviar comida e armas apenas se houvesse o fim da tomada de terras e de fábricas, assim como de dissolução das milícias dos trabalhadores), durante a primavera de praga e um longuíssimo etc...

A principal questão eleita pelo autor para o socialismo no século 20, a de construir uma democracia operária superior durante um estado de guerra permanente, não está equivocada. O problema é que ela já teve sua resposta. E ela não veio, sob nenhum ponto de vista, do stalinismo. Pelo contrário, foi a preocupação fundamental de todos os maiores pensadores do marxismo e está ligada a revolução mundial.

Vemos então que sua visão, apesar de aparentemente “bem intencionada” não apenas passa, de fato, por cima do fundamental, como leva ao crime político de confundir a defesa dos trabalhadores com a defesa dos burocratas que usam suas conquistas para manter seus privilégios.

Como diria o velho Marx “o caminho ao inferno está pavimentado de boas intenções”.  

Em política revolucionária, não é a comoção, mas as armas da crítica que nunca podem faltar a história. Desafortunadamente, não parece ser esta a preocupação do autor, vide este eleger como teoria guia de sua ação, aberta ou maquiada, o stalinismo, esta teoria da traição dos interesses dos trabalhadores.

Desse modo, vemos que a revolução da Coréia não segue firme em direção ao socialismo. Pelo contrário. Seguindo os passos de Jones ela pode até seguir firme...mas em direção a restauração do capitalismo.

 
1-
https://pt.wikipedia.org/wiki/Zona_econ%C3%B3mica_especial#Coreia_do_Norte
2 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/02/1738314-seul-suspendera-operacoes-em-parque-industrial-com-a-coreia-do-norte.shtml

2 comentários:

  1. Bravo! Bravissima análise. Adoraria um sia ter papo de buteco com o autor. Com certeza seria esclarecedor.

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