segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Detalhes


O olho fechado.
Se abre num instante.

Lá de fora o que chega primeiro é o ronco do avião. As motos gritando seguem aos ouvidos na sequência.

É noite.

De frente pro teto um borrão preto, uma escuridão contínua regularmente marcada por fileiras de luzes passando pelos orifícios da janela de metal. Caminham de baixo pra cima conforme os carros passam.

Percebo agora o quão afobado fui a vida toda. Tantos detalhes passando despercebidos, cada um como uma assinatura do momento, ganchos pra que as memórias mais tarde encontrem onde puxar e trazer a lembrança viva ao espaço entre o que os olhos vêm e o que a mente pensa.

Cada toque, cada aroma, cada imagem, tudo podia ser aproveitado, quem sabe um pouco mais.

Um motor estaciona perto. A moto buzina estridente, três vezes. Começa um murmúrio.
Tento destilar cada gota do momento, mental e real, deitado no escuro, focado no instante, pensando em onde estou. Faz tempo que não faço isto.

Dia destes veio outro daquele maldito coração batendo forte. Não sei se é pelo salto muito grande que a minha cabeça fez pro futuro, o beck mofado ou só outro dos espasmos das minhas feridas.

Não, não uma real; de um corte ou mordida de cachorro.

Uma daquelas que todos vamos acumulando na vida e que, vez ou outra, ardem e coçam pra caralho, por debaixo da pele e dentro da cabeça, deixando nossas frases e respostas meio aéreas ou simplesmente nos silenciando por umas horas ou dias.

Lá embaixo o murmúrio continua. Dou uma espiada pelas frestas. Dois caras. Já passam das 23:00. Um deles tá bem feliz. Tá contando uma história. Parece que saiu da cadeia hoje. Saidinha. Do outro lado da rua entre os prédios, da janela do apartamento do térreo, a velha da Dulce afasta um pouco a cortina branca de rendas na ponta e observa tudo. Ê véia que gosta de fofocar!
O escrutínio é severo e atento.

Volto a deitar.
Já faz uns 10 minutos que estou aqui. Nunca me ensinaram a meditar. Também nunca tive a paciência de ficar sentado pensando "em nada" pra o que? Nada!?

Será que era pra nada, mesmo? Bom. Li outro dia que a fita é deixar os pensamentos rolarem e só contemplar o que passa, enquanto você se fixa na respiração. Uma espécie de âncora pra te manter seguro e concentrado enquanto sua mente veleja livre.

Foi nessa onda que me peguei pensando nisto. Estranho porque aqui, parece que estou numa terceira camada de toda essa história. Como estou pensando nisto tudo se... estou vivendo isto tudo?
Percebo que, na realidade, cada fato e gesto se traduz em imagens na minha cabeça, formando camadas de pensamento diferentes.... Começo a velejar mais distante.

Quantos pequenos gestos realizados displicentemente deram uma falsa impressão de mim? E aquela piada meio torta que falei semana passada na mesa do bar? O povo ficou me olhando meio desconcertado. Fizeram aquele "É..." condescendente... Quantos se afastaram porque também não estavam prestando atenção o suficiente nos detalhes? Nos meus detalhes? Quantos se importaram?

Quanta dor causei por isto? Quanto deixei de observar no outro? Quantas vezes coloquei a minha grande imagem idealizada do mundo passar por cima de tantos detalhes, ações, movimentos, expectativas e desejos desses tantos que passaram por minha vida? E quantas vezes fui esmagado por outros tratores de outros como eu?

O teto fica vermelho.
E então azul.

Minha âncora me recolhe. A regular intermitência azul-vermelho bate no céu obscuro de meu teto e atinge meus olhos, passando entrecortada pelos buraquinhos da janela. Um barulho alto começa. Um freio estridente corta o silêncio, como um prólogo.

"Vai, filho da puta, nóia do caralho. Tá de volta?"
Passos apressados e portas se abrindo ecoam pelos cubículos dos prédios.
Na rua entre eles os vermes gritam e xingam. O barulho de uma moto se espatifando no chão é inconfundível. A autoridade confiante parece irritadíssima.

"Tá com bom comportamento é? Não falaram pra'queles troxas que na rua cê não se comporta? Animal igual você tem de ficar enjaulado ou empalhado!"

Volto pras frestas.
Risos e gargalhadas, de uns 4 PM's, são brevemente interrompidos pelo cara da moto. "Eu to de saidinha senhor, não faço mais nada disso, agora lá dentro vou até na igre--" Um soco interrompe a frase.

O amigo dá um passo pra trás e é advertido: "Não foge não filho da puta, senão cê some junto".
Começa uma sessão de espancamento de frente pra todas as casas. O maluco na moto e o muleque na porta já estão no chão. Ele tem família, mas parece que não tem ninguém em casa hoje.

Não posso ficar aqui. Que que eu vou fazer? Porra, se eu ficar parado eu sou só mais um cusão. Pelo menos filmar, né?!! É meu direito! Esses putos não podem vir aqui e tacar o terror desse jeito! É dia 23 de dezembro, porra!

Vou pra janela da área de serviço. Vejo rapidamente os outros dormitórios. Como uma cascata, algumas luzes distantes, tipo as de uma cozinha nos fundos ligando pra iluminar a sala, começam a ascender. A Dulce já abriu a cortina e a janela. De onde ela olha não conseguem vê-la, mas ela parece vê-los bem.

Entre cassetetes e chutes o moleque do portão berra que são trabalhadores; recebe uma bota entre os dentes. Não tenho certeza, mas acho que vi um dente cair na poça de sangue mal iluminada que ele cuspiu no chão.
O da saidinha não tá com melhor sorte. Três espancam chutando e dando cacetadas no coitado. Estão todos rindo, apontando, xingando.

Que que eu faço porra??

Logo atrás deles, no meio da rua, pararam a viatura. Corri pra cozinha e peguei meu celular. Essa porra de resolução não chega até lá. A janela tá meio entreaberta, se eu for até ela e esticar o braço... Não, porra! Quase me viram! Será que não vão marcar minha mãe? E a Letícia? É seu direito, caralho! Vai lá, tira uma foto!

O borbulhar mental se resolve e meio que alcança uma forma consensual: tiro uma foto, meio torto, semi-agachado, olhando, com a cabeça atrás da parte fosca da janela, a tela do celular no espaço entreaberto.
Peguei a porra do número em cima da viatura! Os moleques tão cuspindo muito sangue. Já devem estar apanhando há uns 6 ou 7 minutos.

As janelas começam a se abrir. O conflito interno de cada um parece ir se resolvendo pouco a pouco, tão mais rápido quanto mais dura a tortura na rua.

“Vai matar os moleques, seus covarde!” diz um grito anônimo rompendo a cena de horror. “É tudo trabalhador aqui, seus coiso! Deixa eles!”.

 O PM que desceu o carro primeiro vasculha os olhares. Seus dentes serrados e olhos esbugalhados dão uma feição estranha. Os cara tão vidrado.

Começa a berrar: “Se aqui só tem trabalhador, que que esse filho da puta tava fazendo quando pegamos ele vendendo na biqueira ali atrás? Cês são os culpados! Cês protegem esses filhos da puta e com a biqueira tão ganhando, né?! Quando voltam, voltam pro ninho! Quem falar demais vamo levar de testemunha e vai passar o Natal no DP!”

Ainda assim, mais e mais janelas continuam a ascender.

Agora mais cortinas brancas se afastam, tem até alguns com as janelas abertas, consigo ver algumas telas de celular. Os murmúrios começam a se tornar mais altos, agora vindo de todos os lados.

Os PM’s percebem. Os golpes escasseiam. Deve ter parecido uma eternidade pra'queles dois tomando tanta pancada. Os gemidos se transformam em tosses molhadas. Os xingamentos agora se chocam com força contra a rua.

“PÉ de porco! Cês não servem pra nada aqui!”; “Veio pegar a caixinha de natal e não recebeu, seu safado!”; “Isso é abuso, cês tão matando os menino!”.
Me encorajo:
Vão pra casa do caralho seus verme! O cara só tava conversando! Ninguém precisa de vocês aqui, seu lambe bota de patrão, hipócrita; é quase dia 24 de dezembro porra; olha o tanto de sangue que cê tá arrancando de quem não fez nada pra você; olha as crianças vendo tudo, as velhinhas... cês tem orgulho do que fazem???!!

O primeiro PM a sair do carro para, levanta a cabeça e me olha na janela.
Não diz nada.
Apenas olha, em um intervalo não muito longo, mas particularmente expressivo.
Uns três segundos.
Não consigo ver nenhuma mudança em sua expressão, já séria, pelo que ocorre. Só percebo um leve apertar de olhos, como quem tenta ver melhor algo.
Começa a olhar para as outras janelas e pros caras no chão.

Rapidamente ele vira e começa a dar ordens pros outros PM’s.
Dois deles puxam e levantam o da saidinha. Nem falam nada pro moleque no chão, cuspindo sangue. Abrem o porta-malas da barca e jogam o primeiro. Um deles pega a moto e dá a partida.
Todos dentro, as luzes da viatura param. Ela sai e a moto vai atrás.
O moleque no chão levanta a cabeça ensanguentada, todo ofegante. Dulce já tá abrindo a porta com uma toalha na mão, falando algo pra ele.

Assim, do nada, para a cena.
As luzes começam a se apagar, janelas rangendo se fecham, portas batem, os murmúrios diminuem. Já passa da meia noite. Olhando a rua, agora vazia e silenciosa, levanto a cabeça e observo o horizonte, onde vejo a linha que os prédios da Paulista formam.
Tô com sede.
Bebo um copo de água.
Não to no clima de colocar vídeo ou ler nada. Vou pra cama.

Deitado, penso sobre por onde velejei antes disso. Detalhes. Pensava em detalhes.
O número da viatura me vem a cabeça. O rosto do saidinha. Os olhos apertados do verme.

O que vou fazer com todos estes detalhes?


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