quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

"Sedução confrontacional"

- Porra velho, cê só escreve sobre um tema! Parece xarope assim.
- Como assim, tio?!
O gole desce um pouco mais amargo que o comum. O puto do Jonas começou com as psicanálises compulsórias dele. Foram só dois litrões, menos de meia hora pra ele parar a conversa no meio e dizer que tinha de ser sincero.
- É porra. Alguém tem que te dizer isto. Quando você fica postando e escrevendo desse jeito monotemático, a galera pode começar a pensar que é algum tipo de piração, neurose, uma coisa de doença mesmo, saca? Eu mesmo que não te vejo há um tempo...
Eu já tinha comentado com ele anos atrás - na última vez que nos vimos - que não gostava dessa merda.
Se tem algo pra me falar, me liga, manda um inbox, um direct, qualquer coisa porra. Essa mania de encarregado motivacional de escritório me deixa puto. O pior é que, cortando o papo da roda desse jeito, agora eu sou o centro das atenções. Respondo pra cortar:
- Ah tio, sério? Monotemático o que? Listando as merdas que o seu candidato tá fazendo na nossa vida com a ajudinha dos teus patrões?
- Aí velho! Não falei? Toda e qualquer coisa é motivo pra você começar a fazer malabares com estatística, cifra, notícia; botar na conta dos malvadões capitalistas. Tô te falando, essa lavagem cerebral que não te deixa ver. E ó, eu votei no Amoedo e anulei no segundo. Sou empreendedor; não tenho patrão. - replicou orgulhoso.
O Jonas antes de ser anarco-capitalista, tinha sido headbanger e, antes disso, otaku. Não entendo como fomos pensar tão diferente...
Se bem que não posso falar muito porque também frequentei umas feiras de japonês.
Nesse caso, ambos sofremos na mesma barca do ostracismo social da época. Nunca fizemos um amigo nessas feiras e nem compramos nada. Dois fodidos da periferia que só iam lá pra jogar nos Playstation de graça, bater nos boys com aqueles cotonetes gigantes e tomar mupy de saquinho.
Compartilhamos o declínio e a glória do mupy de saquinho plástico, uma joia hoje perdida.
Agora ele divide seu tempo entre ser coach de programação neurolinguística, psicólogo e microinvestidor na bolsa. “Sempre “pensando fora da caixinha”.
Disse que não foi nos atos do pato da FIESP porque achava a multidão um jeito muito atrasado de reivindicar. Outro dia me mandou uma petição para obrigatoriedade da implantação de canudos de papelão em todo território nacional. Não excluindo os de plástico, porque o livre mercado já iria fazer isso.
- Velho, eu já te falei que eu posso falar de qualquer coisa. Eu só me preocupo bastante com política. Acho que todos nós deveríamos, já que isso afeta em todos os sentidos as nossas vidas e --
- Páára tio!! - Exclamou me cortando. – Tá vendo, Júlia? Fala se não parece doido ficar retrucando sobre política? Cê precisa ter autocrítica, parar de ficar pregando...
Eu esqueci uma coisa importante. Parte das funções de coach do Jonas é ser “conselheiro amoroso”.
Dá dinheiro com os otários que pagam no desespero e status nesse mundinho dos Farialimers... Se a gente parar pra pensar, o Brasil tá avançado demais; até um charlatão tem seu saber organizado, né não?
Uma vez ele me disse que era especializado em “sedução confrontacional”.
Perguntei “que porra é essa” e ele me respondeu que era uma tática pra seduzir por tabela, aumentando seus traços e diminuindo o de outros. Usavam de Maquiavel a Roberto Justus pra potencializar os equilíbrios de handcaps e vantagens emocionais entre os competidores. O objetivo era baixar os do adversário e deixa-lo mal pra ter espaço cognitivo e fazer todo seu brilho aparecer.
Acho que na real o Jonas fez pós-graduação em filha da putice, mesmo.
A Júlia colou com a Sílvia não faz nem dez minutos. Com um sorriso meio sem graça ela diz:
- Ah deixa ele, Jo. Acho superimportante ter essa visão engajada. Hoje em dia a gente parece que não tem mais direitos. A gente trabalha o mês inteiro e não consegue ter nada...
Aí eu percebi a jogada. Eu sou o mais novo degrau na escada do Jonas. A Júlia terminou não faz nem um mês. Isso é que é urubu oportunista!.
Respondi atencioso:
- Total, Ju. A vida só piora e quando reclamamos ou escrevemos algo somos “monotemáticos”. Mas só diz isso quem tá na boa...Vê só o Jonas. O cara é um Glitch Tabajara, vive de dar conselhos pra vida afetiva alheia, fez campanha envergonhada pro Bozo e acha que nós mortais temos de ficar felizes com a “abertura da economia” e o “compliance empresarial”. Os caras aprendem a repetir expressões compostas pra parecer que sabem do que falam.
Notei um sorriso de soslaio no lado esquerdo da boca. A testa do Jonas franziu.
- Ah! Falou o motorista de Uber! Olha Ju, ele não consegue tirar nem dois barão por mês e quer cantar de galo. Ce não tiver pra pagar essa breja eu te empresto viu, man? Hahaha.
- Acho que pisei no calo de alguém...
- Que calo o que, loko! E eu lá sou mulher? Só tenho calo na mão. Hahaha.
De súbito, Júlia protestou:
- Nossa Jo! Como você tá machista!
- Machista não! Eu só reconheço as diferenças naturais entre os gêneros. Cê não vai vir com esse papo de machismo, né? Você também tá nesse negócio monotemático de ideologia de gênero?
- Não é isso, é que eu acho que não existe essa--
- E Laiá!!! Cês tão chato demais, gente! Achei que depois de anos de vocês ai presos nos namoros a gente ia se encontrar e falar da vida, aí cês me vem com essas besteiras de esquerdista? Ficaram solteiros e ficaram mais chatos! Hahaha. O lance é que já foi provado que a sociedade sempre foi patriarcal e o humano só funciona assim.
- Fontes? - Questionou Sílvia interrompendo a própria expressão boquiaberta.
- Oh, eu vou dar uma mijada, mas cara, tem um vídeo que vocês precisam ver. Tudo muito real, nada dessas coisas ideológicas de vocês. Cês conhecem o Olavo? – E levantou rápido para o banheiro.
Acho que percebendo o terreno, desistiu de tentar alguma coisa e decidiu por um pit stop. Olhei pra Júlia e pra Sílvia. O encontro de 3 olhos esbugalhados e bocas abertas falaram mais do que qualquer frase.
Não esperamos pelo Olavo. Porque, com certeza, não aguentaríamos até a terraplana.

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