quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A lógica das coisas

 



TRIM TRIM TRIM!


Dei um pulo na cadeira. 
Só podia ser aquilo. 

Todas as notificações estão desativadas. Sabe como é, pequenos gestos em benefício da saúde mental. 
Deixei apenas as notificações do E-mail já que precisava de alguma resposta sobre a entrega. 

Aperto o botão lateral, deslizo o dedo formando o desenho de bloqueio sob o sulco esculpido pelo hábito na película judiada e lá está a notificação dos Correios. 

Exatos 70 reais, só de frete, para entregar 4 livros. 
Na "resposta à manifestação", a entidade pretensamente humana, indistinguível de um robô, comunica que meus pacotes estão já há 6 dias esperando a retirada e que a data limite é amanhã. 

Inútil argumentar. Esta já é a terceira reclamação realizada, todas respondidas me enrolando e mandando ir buscar algo pelo que já paguei a entrega.

Reúno a moral carcomida pelos meandros burocráticos e vou até a agência. 
Uma porta daquelas de bar, sanfonada e de aço, dá entrada a uma aglomeração de inconformados, atendidos por dois funcionários, todos displicentemente sem máscara, resmungando, cada um na posição que lhes cabe. 

Já se vão 20 minutos de espera e ainda me restam 30 "usuários" para terminar mais este calvário citadino. 

Pelo que posso apurar, é sempre a mesma história. Os Correios não entregam se casa tiver "restrição de envio". "Área de Risco" eles dizem.

A cada nova senha, uma cara feia e resmungos. 
O tom começa a ficar mais alto, as palavras mais ásperas, como se o antagonismo ganhasse pouco a pouco forma no ar. 

Na sala apinhada, um mais exaltado começa a gesticular, bradando sua máscara cirúrgica numa mão e o  RG noutra:
"Toda vez a mesma merda! Vocês falam que vão na nossa casa e não tem ninguém. Porra, eu cuido de um filho cadeirante, quase não saio, vocês nao foram porra nenhuma". 

O pavio é aceso. Diante dos olhos caídos de atendentes estafados do espetáculo que já consideram ter visto vezes demais, a indignação toma outras bocas: "Eles são tudo um bando de folgado, é tudo mentira não levam porque não querem".

O funcionário, como que calejado, assume a defesa da empresa e informa em tom igualmente ríspido indignado: "Senhor, eu mesmo moro 'área de risco'. Vou fazer o que? Não é tudo sobre você. Infelizmente, na sua região existe muito roubo de carga e essas coisas, tem que se habituar...". 

Tudo ali, na minha cara. Dois peões, entreolhando-se com ódio, cada um munido de suas razões, acotovelando suas angústias na fila da miséria de vida amarrada por protocolos e regras burocráticas na maior cidade da América Latina. 
Um grande centro onde peões, em tempos em que bilionários enviam conversíveis para Marte, não conseguem receber um pacote.

Sem tardar, o convidado de honra deste encontro tragicômico se apresenta: "Tem que privatizar essa porra! Vai ver se o mercado livre faz isso aí?!!". 

Os números correm tão lentamente quanto crescem e se acunulam em mim e noutros aquele calor, aquela boca seca, aqueles repetidos "tsc" de insatisfacao e as rosnadas de impaciência. 

Você já viu um ser humano rosnando? É um fenômeno muito particular. Uma expressão de amargor e raiva como que escorrendo da etiqueta social, pouco a pouco, ficando cada vez mais alto e evidente, mesclando-se com as progressivamente enrugadas marcas no rosto de quem desejaria jogar tudo pro espaço. 
O rosnado humano é um grito amordaçado que se dá contra a hipocrisia e desperdício de energia social.

Enfim, chega minha vez. Número 567. Passo veloz por entre os perdigotos esvoaçantes lançados pelas pessoas acumuladas na entrada e chego com meu código explicando o ocorrido. 

Imediatamente, o funcionário se interpõe como uma muralha: "Papel da senha, por favor". Tão rapido quanto o arregalar dos olhos foi o apalpar de meus bolsos com a mão. 
Em vão: "Pouts, cara... Deve ter caído no chão... Mas o problema é es-"
"Se não tem o papel da senha, tenho de chamar o próximo", diz o autômato tocando o painel e chamando a próxima senha. 

Por um instante me sinto flutuar. 

Visualizo toda a agência ao meu redor girando e girando até tomar a forma de uma vertigem que, de súbito, se transforma numa outra sala, destroçada, com montanhas de caixas rasgadas e envelopes salpicados pelo chão. 

Ao redor uma orgia de indignados arregaçam os bancos, depredam vidraças, urinam nos caixas. 
Alguns, mais animados, sobem triunfantes nos carros de entrega e pulam freneticamente em sua lataria; outros, num ato de criatividade destrutiva, pixam R no lugar do X de SEDE(R)X, lançam bolos de cartas rasgadas nos funcionários que correm semidespidos de olhos arregalados; os gritos, o ódio, a raiva explodem num frenesi sem freio. 

Repentinamente me vem ao ouvido:
"Moço, tava aqui no chão da entrada", diz um rapaz de olhos caídos, postura cansada, uniforme do supermercado, entregando minha senha em mãos. 

Sorrio a ele e entrego, já sem sorriso, a senha ao caixa, explicando o problema dos pacotes e reclamando que nunca fazem a entrega. A resposta é padrão: "Você mora em área de risco". 

Contraponho, como um Quixote da sensatez, talvez pensando que ali a Razão tenha alguna soberania, que o carteiro passa toda semana e que inclusive já recebi alguns livros. Tão mais injusto me cobrarem três vezes, pelo frete, pela passagem de ônibus e pelo tempo perdido. 

Ledo engano.... Neste tipo de repartição, não há espaço para idealismos tão pueris quanto os da Lógica. 

O caixa, soçobrando minhas esperanças, abaixa o óculos até quase a ponta do nariz e me responde em tom baixo, quase provocativo, em meio à balbúrdia que se acumula nos caixas ao lado:
"Eu sei que é difícil pra quem não trabalha nos Correios entender...Mas uma coisa são os carteiros de Rua, outra são as encomendas. Nas áreas de risco, não entregamos mesmo."

"E o Frete de cada um dos livros que paguei? É injusto eu sequer receber.", replico, ingênuo, ainda abraçado à Lógica e algum senso de justiça.

"O frete não é só entregar, né? É TODO um processo... Veja, a gente as vezes não sabe, mas tem muito roubo de carga nestes bairros. E nâo é só nesse seu CEP não viu...? É na Vila Olimpia, Jardins, Butantã..." replica, como que tentando explicar a imparcialidade social da suposta regra. 

Respondo, já sem paciência: "Lá onde moro não tem isso não cara... Se fosse assim, outras empresas não entregavam compras, o carteiro não iria... Moro há 18 anos e nunca vi isso lá. Isso é preconceito!"

Esbugalhando os olhos e fazendo erguer um sorriso de soslaio, o caixa lança uma tréplica, meio que demarcando o fim da história: "Ah, tem sim! Você é que não sabe."

É engraçado o efeito psicológico que uma posição burocrática proporciona a um indivíduo. 
O sujeito nunca me viu na vida, mas julga saber melhor quais são meus direitos e a realidade de onde vivo, atribuído da onisciência proporcionada por um código numérico e uma etiqueta no site de sua empresa a um palmo de seu nariz. 

Até pensei em mencionar o fato de que no cruzamento da rua onde vivo ficam duas biqueiras, cheias de vapores e gerentes, visitada 24 horas por dia por clientes e, claro, a fiscalização informal do Estado em forma de propina. 

Achei que se falasse isso obteria o triunfo dessa presença já maltrapilha na conversa - a Lógica -, pois não existe nenhum traficante que vá querer atrair problemas pro seu comércio, proporcionados por roubos de carga na mesma rua. Mas eu aprendo. Sei decretar o fim de propósito quando o vejo em uma conversa.

Deixo a bola rolar. 
Um senhor de idade vem e coloca o RG na boca do Guichê, falando que seu número havia passado e não tinha sido chamado. O Caixa muda sua expressão gelatinosa para uma feição enrugada de nervosismo: 
"Chamamos sim! O senhor é que não prestou atenção. Espera aí que já atendo".

Antes mesmo que o velho, a essa altura com os olhos arregalados, pudesse responder, nosso atendente olha para o lado e comenta com seu colega: "O problema é isso... todo mundo quer ter razão, direitos, mas nenhum dever..".

Tento replicar com um "Po cara, ele é um senhor de ida-" e vejo a última sílaba mergulhar no vazio que se abre no espaço  que o caixa ocupava na cadeira. 
Com seu sorriso de soslaio, o sacripanta pega a lista que lhe dei e sai para uma sala ao lado, parecida com um depósito.

Lá, entre o burburinho, consigo ouvir alguns comentários com um terceiro interlocutor.

"- Tá foda hoje, ein? Puta que pariu, cheio de Véio e desse 'povinho'.
- Ah, chega essa hora na segunda e é sempre assim...
- Que que esse véio queria?
- Ah, tava babando na cadeira e perdeu a senha. Deve estar querendo pegar uma muamba qualquer.
- E esse cara ai conversando tanto?
- Ah, outro ignorante de merda... Mora na porra da favela e quer pacotinho na porta de casa. Livro ainda... Deve estar comprando essas apostilas de supletivo ou 50 tons de cinza pra alguma velha na casa dele..." Caem os dois em gargalhada,  emanando estranhamente do depósito para a sala tomada de expressões carrancudas.

Por alguns instantes o "ignorante de merda" fica repetindo em minha cabeça. A lógica, essa peralta ingênua, reivindica mais uma vez seu lugar. 

De que adiantaria, no entanto, mencionar que os livros se tratam da compilação das matérias da Gazeta Renana, de Marx e Engels? Ou que também abarcam a fenomenologia do Espírito, de Hegel, além de Dawkins, Ursula K le Guin, Rosa, etc? 

Peço paciência a nossa peralta e espero o retorno dos pacotes. 
Afinal, que lógica há em tentar convencer outro peão, que pelo simples fato de ser concursado e sentar num caixa, é engolido pela ideologia patronal e se considera superior, sequer reconhecendo a discriminação de classe evidente e cristalizada na absurda determinação de uma região periférica como "Área de risco"?

Antes de voltar, na transição entre as salas, o caixa vira pro interlocutor e diz "E aquele PDV lá, cara? Olha, se virar, eu to saindo fora.... Quero é trabalhar pra mim mesmo!", respondido por um efusivo "Aí é vida!", do terceiro.

De volta, me entrega 3 pacotes e informa que terei de retornar depois para pegar o quarto, que ainda não chegou. O quinto, segundo me informa, ficou 8 dias na agência e hoje, antes do fim da data limite, foi devolvido ao remetente.

"PUTA QUE PARIU", talvez eu tenha dito em voz alta. Não importa. Mal pego os livros e nosso caixa já chama a próxima senha, sem sequer olhar-me nos olhos ou balbuciar um gesto humano no fim da transação. 

Enquanto saio, o "Ignorante de merda" continua ressoando em minha cabeça. 
No entanto, pensando bem, me vem um estalo de epifania. 

Talvez esse imbecil tenha me dado uma boa ideia. 
Enfim, encontrei um bom uso praquela bosta molhada que os gatos, ratos, cães e sabe-se lá o que mais distribuem regularmente na porra da minha escada. 

Bato um fio pro Cléber. Ele estava fazendo uns corres de prestação de serviço de contagem de patrimônio. Acho que é MEI. Peço seu endereço e dados pra enviar pro antigo endereço do Juca, que não mora lá  nem vai buscar nada. Cadastro meu e-mail alternativo pra rastrear.

Encho um pacote com variedades fétidas sortidas de cores, formatos, texturas e origens diferentes. Furo minuciosamente com agulhas toda a extensão do plástico e embrulho no papelão. Na capa, a designação "Aditivo agrícola natural" pra não dar pala. Encaminho pelos correios.

Já faz 4 dias.

TRIM TRIM TRIM

Recebo uma notificação: "Favor retirar sua entrega no endereço solicitado em até 4 dias úteis. Motivo: destinatário ausente/área de risco".

Ainda estou me decidindo se daqui a 4 dias volto lá, só pra ver a cara de nossos colegas ou se deixo a merda refazer todo seu percurso lógico.


Nenhum comentário:

Postar um comentário