quinta-feira, 15 de agosto de 2019

É muito louca quantidade de detalhes que a gente perde, bicho!



Dia ensolarado. Depois de umas friacas, um dia desses parece que limpa a atmosfera. Alguns anos desempregado permite perceber alguns traços gerais do clima ao passar dos dias.

Um bosque verde desabrochando flores de todas as cores balança levemente pra um lado e pro outro. Nada daquela coisa violenta e esgarçada que as pessoas vêem em filmes.
O vento flui lento, corre, acelera e freia, gerando movimentos variados que encontram, nas árvores, só pequenas ondulações.
Enquanto isso, a luz bate firme sob as abóbadas esverdeadas e reflete nos olhos, com cores meio que preenchidas com um filtro esbranquiçado.

Uma serra é ligada. De cima de um andaime um operário serra piso, serra teto, serra tudo. O barulho áspero e ruidoso da serra dilacera o ambiente, algo perfeitamente natural dada sua criação artificial, ou seja, abrupta para a lenta e imparável evolução das coisas naturais.

Um cachorro, algo um pouco menos alheio a natureza, late, esperneia e resmunga de dentro da sacada do predinho de 3 andares, cada um com 2 apartamentos, cada porta com seu jeitinho.

Lá embaixo um gato se esmiúça dentro da hortinha improvisada entre o início do barranco e o muro que o corta. Entre flores avermelhadas, brotos redondos e amarelados, uns 4 troncos e cinco linhas de arame farpado os cruzando de cima a baixo, o gato olha desafiador e, aparentemente, meio sádico para o cachorro. Talvez zombasse de sua incapacidade de sair por uma simples grade de sacada.

O vento acelera rápido.
Olhando para a esquerda, numa distância de, quem sabe, uns 200 metros , uma árvore enorme que forma uma abóbada tão perfeitamente arredondada que parece que alguém a apara toda semana, dança no ar.
A fumaça da serra se impõe entre a visão e a dança da gigante. Um ladinho pra esquerda, outro pra direita, uma espalhada geral, o vento passa por entre os galhos fazendo toda a árvore parecer um dente de leão que balança mas se recusava deixar voar suas pétalas.
Do seu lado esquerdo, aparentemente imóvel, ainda faz seus gracejos a árvore quase sem folhas, nua, balançando apenas seus pequenos brotos e galhos como uma espécie de esqueleto semimóvel.

É louca a quantidade de detalhes que a gente perde!
Parece que, vez por outra, auxiliado por algum remédio pra romper a monotonia quase inescapável da rotina social, conseguimos ter estes rompantes e olhar as coisas como são. E, derrepente, levar um susto incrível.

Arrancar poesia e, ao menos como atitude mental, resistir a maré de normatização, robotização e alienação talvez seja se dar um tempo para isto: meditar o cotidiano, ismiuçar as camadas do dia a dia, se dar um tempo pra respirar e ver cada um destes detalhes, tão simples que, no dia a dia de obrigações, nos parecem inexistentes.

A serra me era um pouco mais do que um incômodo semiperceptível. As cores me passavam batido. As árvores pouco se diferenciavam daquelas dos quadros da sala. A luz, pouco mais forte do que a do meu quarto. Os tons imperceptíveis, as danças insondáveis, os detalhes embolados na massa do cotidiano.

Foi preciso apenas alguns instantes pra perceber o quão mais rico é o tecido da vida. E como, a disputa por nossa atenção, essa guerra de morte pelos olhos e  vontades humanos, na qual, tantas vezes, contribuímos voluntariamente nestas redes sociais, precisa e só pode ser freada com, além de muita luta e consciência, um momento pra parar e fruir.

Afinal, o único que temos e sob o que nos movemos e geramos qualquer riqueza e trabalho é o tempo. É nesse tecido da vida que nos movemos. E é nele que tudo passa.

Amanhã tomara que eu acorde e ouça a serra ou quem sabe o cachorro... Quem sabe...

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