quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Automático

Folheei algumas páginas daquele livro que estou pra terminar já há umas duas semanas.
O tempo escorre pelos dedos.
Tinha saído pra espairecer. Muita pressão. Muitos resultados esperados. Alguns frustrados, outros conquistados; aquela coisa banal que preenche a gangorra de qualquer um de nós.
Me sentei num dos bancos do parque. Alguns jovens nas mesas, outros dormindo nos bancos, duas moças que trabalham na limpeza sentadas numa mesa de pedra, entre sorrisos e pequenas falas, intercalam uma giradinha nas pétalas da pequena florzinha amarela que caiu da árvore sombreando o parque.
Me levanto e vou pra avenida.
Atravesso seu canteiro central e o farol fecha.

No entremeio do caminho, me cruzam velozes jovens, apressados com suas bicicletas, as vezes próprias, as vezes alugadas do Itaú.
Um deles, talvez por medo de eu cruzar muito rápido o cruzamento com a ciclovia, talvez apenas instintivamente, freia levemente e me olha.
Menos de um segundo.
Nossos olhos se desviam.
Após ele, bicicleta após bicicleta, jovens negros passam com seus grandes cascos de ifood. Empreendendo... às custas de si próprios, anônimos, apressados, exauridos e suando.

Chego a margem oposta. Imediatamente me vejo submergir na corrente humana que conduz o ritmo da calçada.
Olhares baixos, outros sorridentes para suas telas, alguns trabalhadores brincando entre si, esbarrões e desvios.
Me percebi de novo imerso em nós. Só por estar. Quem sabe tentando entender.

Quase em frente ao mercado percebo um rapaz. Negro, descalço, com as roupas um pouco sujas e um rosto avermelhado, talvez de sol, talvez de goró.
Olhei de novo.

Ele estava com um nunchaku na mão! Na porta do supermercado, a cada um que passava, girava o instrumento pra cima e pra baixo dos sovacos, girando rapidamente, como aqueles movimentos de kung Fu do Bruce Lee.
Cheguei mais perto, quase ombro a ombro. Olhei melhor.
Eu já tinha visto esse moleque!
Certa vez, naquele bar de esquina, eu e o Cléber estávamos na cerveja não me lembro mais qual número, ele parou e acabamos trocando idéia com ele. Entre uma história e outra, o mano disse que rimava, perguntou se eu rimava. Nos pegou, também, numa charada sobre um pato que não lembro agora. Um puta moleque esperto, inteligente, rápido e com carisma. Disse que queria uma grana pra voltar pra casa e que estava pra lançar um funk. Cantou pra nós. Aqueles bem putaria, tá ligado? Mas o moleque tinha todo o jeito, a entrega e a naturalidade do bagulho.

Agora estava ali, na porta do mercado, tentando trocar parcelas de seu talento inquantificável por, quem sabe, alguma ajuda alimentar pra seguir pro próximo dia.

Eu já estava na próxima esquina quando me perguntei porque não parei e fui cumprimentá-lo. Ele parecia meio desnorteado.
Olhei pros lados.
Ao redor dele se formava um vácuo. As pessoas nem olhavam.
Basicamente ao se aproximar daquele jovem negro e maltrapilho seus corpos, de tão condicionados, se afastavam e criavam uma distância. Cheguei a porta do metrô olhando essa cena.
Subitamente, sinto um esbarrão. Tiro o fone e olho. Um cara mal encarado me encara. Já não tô pra muita graça e pergunto:
- Que foi, tio? Ta loki?
- Cê que tá chapando aí. Tá na nóia maluco? Fica olhando mendigo porra, trombando com os outros...

Tô com um Beck no bolso. Meço a fita. Melhor deixar pra lá. Na fila da entrada, uma puta fila. Imagina o trem? Tenho de correr.

Foi só quando sentei, umas 10 estações depois, que lembrei do moleque e do seu nunchaku.
Submergi, mas desta vez nem percebi, na guerra da sobrevivência e do transporte urbanos.
Me perguntei depois se isso foi antes ou depois de perder o moleque de vista? As vezes, submergir em si, por estas bandas, acaba sendo automático...

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