Lendo a obra, precursora de todo o, hoje, badalado gênero "distópico", Nós, de Zamiatin, frequentemente me pego diante de questões incontornáveis, existenciais e políticas.
A certa altura, o narrador personagem D503 reflete sobre a natureza do Direito para os antigos (o livro se passa milhares de anos no futuro, no Estado Único, onde a população humana está reduzida a 10 milhões, seus membros não tem nomes, mas números e tudo segue uma ordem mecânica e matemática, plenamente controlada). Este mesmo Direito com letras maiúsculas, ou seja, o conjunto de regramentos e formalizações sob os quais, em tese, todos nós e nossa sociedade repousam.
Conclui, sagaz e lúcido, que o Direito é uma função do poder, exatamente como o Estado. Mais exatamente uma função do poder de classe.
A ficção "pluralista" de que o Estado e, assim, o Direito são espaços "neutros", disputáveis, se desfaz todos os dias para aqueles que estão na base da sociedade, ou seja, os pobres e trabalhadores.
Sua função fundamental é proteger a ilusão de que existe tal neutralidade, precisamente porque esta é a melhor forma de proteger o que importa: as relações de produção entre os membros dessa sociedade.
O que isto significa? Que sua função fundamental e inescapável é lutar, com a caneta do juiz ou com o cassetete do PM, para garantir que a maioria continue trabalhando, gerando valores e riqueza sociais com este trabalho e que, esta riqueza, continue sendo tomada privadamente, sem pagar nada em troca, pela minoria de magnatas, empresários, capitalistas.
O mecanismo é, portanto, propositalmente complexo, pois no caminho de seu entendimento, com a massa de explorados absorvida pela preocupação em passar o mês e sobreviver alimentar e psicologicamente, é fácil se perder.
Eis a base fundamental que nos permite entender porque, de 2016 para cá, tudo ocorre como ocorre: presidente derrubada sem crime; STF legitima a isto e ao ilegal teto de gastos em saúde e educação; legitimação das reformas trabalhista e da previdência que destroem a vida do trabalhador e o baixam o preço do trabalho (vulgo menos direitos e salários); prisão, na correria, de Lula por ser adversário eleitoral do Bozo; ligações evidentes da família Bolsonaro com milícias e assassinato de Mariele sendo diminuídos e naturalizados.
Isso, então, serve como potente lição a quem quiser aprender e, principalmente, a esquerda dita revolucionária no Brasil (aquela à esquerda do PT).
Como função do poder, as soluções podem vir tão menos da Justiça e do Direito, burguês, patronal, quanto da ocupação dos espaços parlamentares no Estado.
A saída do impeachment e a cômica, embora trágica, indefinição da esquerda brasileira quanto ao que defender na manifestação que organizam para o dia 18 - o mesmo dia do ato chamado por Bolsonaro - corresponde a confusão adquirida pelas compreensões equivocadas e irrealistas sobre tanto o Direito quanto o Estado. E contrapor um movimento organizado nacionalmente sem uma visão clara de pelo que se luta é a melhor forma de perder o embate.
Não podem chamar o impeachment pois o congresso está lotado de bolsonaristas, bíblia, bala e boi. Assim qualquer linha parlamentarista se torna inútil e não mais do que o já comum berreiro e performance midiática dos poucos parlamentares de esquerda.
Por outro lado, separada dos espaços de vida e trabalho da real massa dos trabalhadores, esta esquerda não pode oferecer e convencer de um projeto próprio, de país e de mundo, que são a única força capaz de fazer frente a este neoliberalismo sem amarras que domina o poder no Brasil.
O primeiro passo é perceber o próprio "xeque" em que se encontram as multidões de explorados e a própria esquerda, espremidos entre a selvageria policial, judicial e empresarial capitalista e as traições e ilusões vendidas pelo PTismo.
A greve da Petrobrás não é um detalhe. Neste grande evento da luta de classes os trabalhadores poderiam mostrar seu peso, sua capacidade de controle e o quão grande é o seu poder e ação, que movem a sociedade.
CUT e PT, com apoio de correntes do PSOL, por exemplo, recuaram no momento em que era preciso unificar com outras categorias e desempregados, para transformar isto tudo num enorme conflito de toda a classe contra o absurdo que tem se tornado a vida.
Não fizeram em nome de confiar no TST e, nesta semana mesmo, viram que o máximo que este lhes propôs foi manter as demissões, pagando uma rescisão um pouco maior. Sofrerão, ainda, a demissão de quem foi linha de frente na greve e, assim, mais desmoralização virá para toda a classe.
Do Estado e da Justiça não virá nenhuma mudança. A república de 88 ruiu. O que existe é um regime eleitoral tutelado cinicamente pelos militares e controlado pelos bancos, os que verdadeiramente mandam no baixo e médio empresariado industrial, ruralista e comercial. Isto não é uma democracia.
Num governo do povo não morreriam 170 pessoas em 5 dias de motim miliciano/policial como no Ceará ou como em qualquer movimento de policiais nos últimos anos.A saída é, como no caso do Direito, golpear onde importa: o coração do sistema, as relações de produção e exploração do trabalho.
Por isto, ignorar os 14 milhões de desempregados, os 40 milhões de informais, o potencial unificador e explosivo de greves, como da Petrobrás, em nome de ações parlamentares e eleitorais, pensando que "preencher" o Estado ou o Direito com "gente boa" é suficiente, é puro oportunismo, covardia, cegueira.
O poder do Estado não vem das instituições; o poder do Direito não vêm das palavras e regramentos; o poder da polícia não vem destes dois. Estes poderes emanam das relações de classe, da exploração econômica e, cada vez mais, da inconsciência e alienação da maioria explorada, que é objeto desta dominação.
Organizar e conscientizar, como únicas formas de romper este ciclo, demandam jogar por terra qualquer ilusão no Estado e no Direito. Ambos são ferramentas da classe burguesa, dos 1%, dos capitalistas, chame como quiser. Apenas impondo nossa força, com métodos de força, poderemos destruir estas ferramentas e organizar outras, diretamente, controladas pela maioria trabalhadora.
Só existe futuro, no médio longo prazo, por este caminho. Fora disso, preparem-se para milícias, pestes, explosões de raiva social espontâneas, fome e desmoralização. Felizmente, os povos lutam e seguirão assim.
Chances para o novo existirão.
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