sábado, 7 de março de 2020

Eu não gostava de ler.


Eu não gostava de ler.
Talvez pelo temperamento explosivo e um senso prático por demais aguçado, a ideia de sentar e por horas destrinchar, entender e memorizar tantos conceitos através dos labirínticos meandros de um texto, era muito angustiante.

Não me entenda mal.
Eu lia, desde pequeno, todo tipo de quadrinhos.
Comecei com Batman, colecionado desde os seis anos ou menos. Também amo mangás dos mais variados estilos, geralmente aqueles mais de combate e com narrativas de superação dos personagens. Mais tarde fui conhecer obras fantásticas como a história de Musashi, compilada em Vagabond, além de outros dramas ficcionais como Battle Royale, Gantz, Bersek, entre outros.

Quando moleque, quando tinha algum dinheiro, comprava uma edição da liga da justiça, das edições mensais de Batman ou algum mangá e ficava folheando, memorizando os diálogos, os traços do desenho, vendo o tempo passar, às vezes até adormecendo com a revista no peito.
Meu pai sempre me chamava atenção para o pé na parede e, quando adormecia, me colocava cobertor enquanto ele assistia alguma coisa na TV na casa onde nossa família residiu, sem possuir, por décadas.
Hoje, passando por ela, só restam lembranças.
Uma placa de "Aluga-se" soterra a expectativa que poderia, irracional, existir de voltar a pisar nela ou ver meu pai sair sorridente falando alguma coisa engraçada, para abrir o portão - isso quando eu não o pulava.

Foi ao longo da faculdade que percebi o quão difícil pode ser ler.
Pegava os ônibus chamados "interestelares", partindo do Jaçanã até o Butantã e, entre apagões fisiológicos ao longo das duas horas e meia de viagem, tentava arrancar o máximo que podia de Maquiavel, Schumpeter, Levi Strauss, Weber.
Isso tudo foi antes de se inaugurar a Linha amarela - evento no qual estive presente para repudiar os velhacos PSDBistas que, entre desvios e cartéis, passagens caras e transporte precário, inauguravam uma estação para servir a USP, quilômetros distantes da mesma.

Nunca tirei as melhores notas e, durante grande parte dessa jornada me pegava em contato com as mais diversas linhas do pensamento que, pela dinâmica da vida, não penetravam ou despertavam minha curiosidade da forma mais eficaz.
Era como se houvesse uma névoa que bagunçasse nossa relação e a leitura era sempre uma questão de esforço e páginas, de iniciar a caminhada esperando concretizar o maldito número visto na página final do livro ou texto.
As provas eram a coroação do martírio.
Trabalhando, dificilmente tinha ânimo para seguir uma rotina diária e constante de leitura, logo, a solução eram as maratonas dois, três dias antes, quando não no mesmo dia.
Café, tremedeiras, consultas heterodoxas, tudo isso se tornou meu modus operandi para sobreviver na selva do mundo acadêmico e sua exigência burocrática de centenas de páginas por mês.
Aos professores, draconianos em sua maioria, não importava trabalho, greve, distância ou estado psicológico.
“Essa faculdade não é para quem trabalha mesmo”, repetia uma delgada professora de semblante e nome nórdicos, certamente orgulhosa de sua posição alcançada, com baixo esforço, mas muito “mérito”, na estrutura estatal de ensino.

Me organizar politicamente, algo que pulsa dentro de mim por diversas razões, foi uma salvaguarda e uma boia nesse mar tortuoso.
Lia muito, sobretudo textos políticos, e-mails e obras clássicas do marxismo, pois, além de me interessar e ser necessário para uma ação política consciente, sentia um enorme prazer de conhecer as histórias de outros, como eu, que buscavam compreender seu mundo, as inter-relações entre seus membros e as ferramentas para transformá-lo - já que esta necessidade está mais evidente a cada dia em que o capitalismo destrói nossas mentes, sociedade, natureza e futuro. Isto reascendeu uma ponta de esperança de que, talvez, eu não odiasse ler e o problema fosse a forma como este hábito me fora apresentado e exigido.


Literatura e teoria, sobretudo a política, são gêneros que, ainda que possam ser, geralmente não são lidos da mesma forma, no mesmo ritmo e com a mesma atenção aos detalhes. Uma obra teórica, como aquelas exigidas tanto pela ação política quanto pela universidade, demanda outra dinâmica para se ler do que uma revista em quadrinhos ou um romance.

Penetrei fundo nesse mundo e, tal como antes, quando com algum dinheiro comprava revistas - ou, diga-se a verdade, jogos de playstation -, passei a direcionar o dinheiro para livros, em geral, teóricos e políticos.

Um fenômeno esquisito começou a se apresentar.
A linguagem, é claro, passava a se mesclar e, então, toda a gama de gírias e expressões que sei e sempre mobilizei para me expressar, começavam a se fundir com palavras e lógicas mais complexas.
Um personagem genial certa vez disse que se você entendeu realmente algo, você deve ser capaz de explicá-lo de forma simples e direta. Não é algo fácil e logo percebi.

Para os parceiros de quebrada, antigos e novos, muitas vezes eu era como uma esfinge.
Um cara que falava uma linguagem próxima, mas que às vezes entrava numas complexas que ou comiam a mente e deixavam em crise, por vezes, esclarecendo muitas das questões que afligem nosso cotidiano ou simplesmente não faziam sentido.

Já na Faculdade, se dava o oposto.
Tantas vezes o preconceito de classe se expressava sem nenhum pudor, como quando me perguntavam se eu "também era skatista", ou nas perguntas inocentes sobre "porque você não consegue ler mais?", sem falar da indignada surpresa de classe média uspiana com a "agressividade e aspereza" com que eu me portava nas lutas, atos ou papos. Um acinte para o decoro exigido pela recatada juventude pequeno-burguesa da USP e seus hábitos autocentrados.
Sentia-me assim, sempre no meio do caminho, em duas canoas, em dois espaços, tentando ligar pontas que, claro, em tantos sentidos, são irreconciliáveis.

Somente depois de terminar a graduação e ser demitido pude perceber o prazer da leitura. Reviver a literatura, o mangá, a teoria, no meu ritmo, respondendo as questões que eu faço diante da realidade e trilhando um caminho de desbravamento do conhecimento com meus pés livres, no meu ritmo. Este ano em 2 meses li 4 livros. Minha companheira, a qual, certamente, compartilha muito destas dificuldades e inquietações comigo, também termina o seu quarto.

Ler é, afinal, uma ferramenta. A mais poderosa, pois, através deste ato, que, não se enganem, sempre exigirá esforço e dedicação desde que haja condições para tanto, é que somos capazes de acessar a montanha infindável do conhecimento e das histórias humanas.

Somos uma espécie que só está onde está por sua capacidade de contar histórias e, através delas, promover coesão social, laços de solidariedade, valores comuns, perspectivas compartilhadas que nos movem a um futuro e nos dão objetivos, esperanças, vontades.

Não é por menos que aqueles, interessados na dominação e no privilégio de classe dominante, atacam a cultura, a leitura, o saber, Paulo freire e buscam distorcer e corroer, seja a capacidade de leitura, seja o próprio conteúdo desta.

Hoje eu amo ler.
Porque consegui, entre trancos e barrancos, encontrar uma forma de ligar o prazer com o conhecimento e dar sentido a este hábito. Sentido este que é o de tornar mais consciente minha compreensão de mundo para transformá-lo.
Isso me fará uma pessoa melhor, um companheiro melhor, um amigo melhor, um revolucionário melhor, um rapper melhor e um humano mais pleno e ciente de toda a tortuosa luta, os exemplos e lições que o passado deixa. 

A leitura é uma chave que te permite, em primeiro lugar, saber quais portas abrir e quais outras trancar.
Hoje, diante desse prêmio conquistado, dia após dia, pouco me importa que uns me achem um MC “professor” ou outros me achem um “cientista social” pé rapado ou maloqueiro.
Ler me ensinou que  estamos imersos e constantemente pressionados pelas margens de nossa própria ignorância, imaturidade e irreflexão.

Digamos que sou ambos. E mais! Sou um pouquinho de tudo o que absorvo e, se quero ser algo, é ser mais, com todos. Inclusive com estes que, infelizes, ainda não perceberam que podem ser mais, juntos.

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