quarta-feira, 24 de junho de 2020

A volta dos que não foram.

O sentimento de angústia é uma entidade familiar dos brasileiros há uns bons anos.
Em particular para aquela pequena franja de trabalhadores que, pelas casualidades da vida, tiveram contato com os meios intelectuais de esquerda e que buscam interpretar uma saída para todo o beco histórico - ou talvez seja melhor chamar de poço - em que nos encontramos. 

Entre os trabalhadores mais distantes desse privilégio, a realidade se apresenta como uma sucessão de decepções, sem saída. 

Para uma geração mais antiga - aquela que viveu os anos "dourados" da luta operária dos 70 e 80 - tudo passou rápido demais de uma esperança de melhoria de vida gradual, concretizada pelas promessas da chegada do PT ao poder nas eleições de 2002, a um desmoronamento vertiginoso das condições de existência, de 2016 para cá. 

A reestruturação completa das relações de trabalho, colocando o país de forma aprofundada na trilha do novo mundo do trabalho, em que trabalhos com direitos são a exceção e a regra são os cargos precarizados, intermitentes, informais e sem direitos, com baixíssimos salários, diminuindo drasticamente o preço da força de trabalho brasileira; o fim trágico do direito, para a atual e futuras gerações, ao mínimo mecanismo de solidariedade concretizado na aposentadoria; o enorme desemprego estrutural e permanente; todos estes cenários impensáveis durante os anos de governos PTistas, surgem como uma realidade  amarga.

Alterações históricas gravíssimas das relações entre as classes acontecem diante de trabalhadores que, golpeados pelas consequências históricas de uma reestruturação preventiva constante do capitalismo, mal percebem com clareza como se dá sua fragmentação, se enfraquece sua força objetiva na produção, se dividem suas formas de viver e ver o mundo e como, em suma, são divididos e conquistados.

A profundidade da derrota histórica do fim dos Estados que, por burocratizados que fossem, eram a expressão histórica e um fio de continuidade de um outro mundo possível, uma outra forma de relações sociais e produtivas criado pelos debaixo, atinge em cheio a estes trabalhadores.

A desmoralização, o hedonismo, os vícios descontrolados, o crime, o suicídio, a fuga, todos fenômenos humanos e sociais presentes em geral na história, são amplificados e tornados vias de vazão de uma profunda angústia social. Está instalado um profundo mal estar que se agrava dia após dia. 

Todos sabem que nada está certo, mas ninguém acha que algo vá mudar. Ou que possa mudar.

A atomização, o individualismo e a prostração são os sinais do adoecimento social dos oprimidos - e também das classes médias - contemporâneos , cuja única realização de sociabilidade é através do consumo e sua ostentação.
Assim, não surpreendem as filas em shoppings em meio a maior epidemia do século.

Como consequência, se produz um retrocesso organizativo, ideológico e da consciência de classe profundos, base desta angústia e sentimento de beco sem saída. 

Se perde a realização do potencial unificador de uma identidade de classe explorada contra uma minoria exploradora, inescrupulosa e parasitária, se dissolvendo no profundo mecanismo divisor das subjetividades dos, nem tão outrora assim, chamados proletários.

Ressurgem as caricaturas infantilizadas que, tal como espantalhos, auxiliam no processo de confusão e desmoralização planejadas dos debaixo.

A velha tática de demonização do dito comunismo, dos "vermelhos" autoritários, sádicos e abortistas encobre os verdadeiros sádicos, parasitas e autoritários no exercício de um poder voltado a, numa fase de decadência capitalista, uma concentração de capitais, de riqueza, nunca antes vista nas mãos dos mega bilionários. 

Qualquer ficção de democracia é pisoteada pela realidade de um país capitalista atrasado como o Brasil, onde 104 milhões vivem com 413 reais e 68 milhões sobrevivem de alguma maneira na informalidade ou desempregados, todos estes bombeando riqueza sugada por uma minoria de bilionários gozando paraíso terreno, em cima de cadáveres de 50 mil mortes (até agora e em dados oficiais), evitáveis, por Covid19. 

Esta angústia conduziu milhões de uma enorme crise de representatividade, com eleições atrás de eleições de aumento em votos nulos e abstenções, para a demagogia "antisistêmica" prometida por Bolsonaro e sua gangue de protofascistas.

Uma vez enterrada a esperança vendida pelo PT graças aos tempos excepcionais de crescimento econômico, sugada para dentro do Estado e de seus programas sociais, o caminho da destruição econômica na colônia, exigido pelos países imperialistas, pegou estes proletarios desprevenidos. 

Imperialistas? Um termo tão século 20... Com consequências tão presentes no século 21. 

Nossa economia, dependente e submetida em todo o fundamental, é retalhada e reorganizada de acordo com os planos dos grandes monopólios estrangeiros. 

Programas sociais cancelados, recursos cortados, Petrobrás é afundada, Embraer quase entregue aos estadunidenses, globalplayers da construção destroçados, grandes exportadores de carnes absorvidos pelos capitais gringos. E no fundamental, seguimos exportadores de bens agrícolas, minerais e de pecuária, enquanto fazemos valor fluir para as metrópoles comprando todos bens industriais e tecnológicos que  vendem. Uma semicolônia, formalmente independente, na prática com sua administração controlada pelos estrangeiros.

Do vampiresco Temer, só se produziu tragédias, num regime ainda mais carcomido, fruto de mais um golpe de Estado realizado por frações burguesas que cansaram de esperar e decidiram governar diretamente, sem gerentes vermelhos, atendendo as ordens de Washington e cia.

Sempre projetando sua sombra sinistra, por 13 anos debaixo das asas dessa progressismo avermelhado petista, militares mantiveram sua parte no banquete. Isentos dos efeitos das reformas, sugando vorazmente os recursos públicos através de pensões , soldos, auxílios e penduricalhos, a nova república foi um bom negócio. 

Trocaram incertas consequências da politização dos trabalhadores, tão perigosa para os interesses empresariais, nos anos 80, por alguns anos de trégua e "banho maria". 

Perdoadas, por lei, as atrocidades cometidas, se tratava de corroer a memória histórica, pouco a pouco, sob as asas daqueles contra os quais combateram na época das guerrilhas e greves. 

Voltam a falar abertamente em revolução de 64 como marco democrático e demonstram, após 40 anos, a tutela em sua forma mais plena, acenando com um pretenso papel moderador militar, cuja fonte, não surpreendente, não é o voto, mas o monopólio das armas. 

Tal como um russo inteligentíssimo diria, afora o poder, tudo é ilusão.

E os fardados brasileiros, estes sim legítimos mamadores das tetas do Estado e, também, de uns biquinhos estrangeiros mais ao norte, nunca se deixaram iludir. 

Em momentos chave, atenderam ao chamado da nação, ou mais propriamente de FHC, para acabar com a baderna dos operários da CSN. 

Nunca fugiram a luta de aplicar, com esmero e dedicação, a ordem democrática materializada na novíssima lei de drogas de 2006, esta atualização da Lei da vadiagem contra os pretos nos fins do século 19, aprovada pelos progressistas Ptistas e mantida pelos reacionários de todas as cores, sempre que convocados aos morros e favelas. 

Como é preciso "mexer os músculos", cumpriram seu dever cívico democrático de levar a civilização ao barbarizado Haiti, destroçado por tragédias naturais e sociais, novamente seguindo as orientações da ONU/EUA e com a condescendência dos progressistas da estrela vermelha. 

Uma verdadeira "escola de guerra" de abate de civis, infiltração psicológica, ocupação militar e, ocasionalmente, um pouco da boa e velha degeneração moral tão familiar as casernas e ao alto oficialato de qualquer Estado Burguês. Afinal, como manter ativo, em tempos de paz, o espírito de combate das tropas sem uma chacina aqui, uma troca de alimentos por sexo oral ali, um estupro e execução acolá....?

Os "filhos de caxias", então, eternos injustiçados, eram novamente convocados a seu papel moderador,  eternos mantenedores da paz, cumprindo seu dever nos eventos históricos - de corrupção e sucção de recursos - da copa de 2014, olimpíadas de 2016 e, por fim, na malfadada, porém bem vendida, intervenção militar de 2018, no RJ. 

Respaldados pelos instrumentos normativos da modernidade condensados na lei antiterrorismo aprovada por, vejam que surpresa, novamente os progressistas vermelhos (talvez objetivando eliminar alguma célula da Al Qaeda em terras Tupiniquins, jamais imaginando ser essa uma arma contra o povo), puderam enfim aplicar as lições da escola haitiana para impedir a decadência e desintegração em sua terra natal.

Heleno, Braga Netto, Villas boas, Luiz Eduardo Ramos são todos criaturas do pacto de 79, este desvio da progressão de lutas populares, uma trégua resultante da covardia e traição, da lei de anistia e da escola do Haiti, uma ocupação imoral e assassina, pensada para arrancar daquele povo qualquer idéia de emancipação, vendida como "missão de paz" pelos "democratas" pequeno burgueses brasileiros.

No governo que se gaba de ter "feito história", encontraram refúgio em Lula e Dilma, os quais fizeram mesmo história pela covardia de 13 anos no poder sem realizar nenhuma reforma séria, seja na estrutura militar, tributária, agrária e por aí vai… 

Os torturadores que não morreram, de velhos, em seus condomínios de praia, tiveram tempo o suficiente para conspirar - e ensinar - com liberdade total de ação.

Em Bolsonaro encontraram a janela de oportunidade para a redenção, a chance de, enfim, limparem suas fardas, com boas ações de falsificação histórica, do sangue derramado e, reeditando a repetitiva história brasileira de assaltos militares ao poder travestidos de "moderação", posar como os guardiões da democracia.

Para isso, auxiliados pelos pupilos da nova geração, tão tacanhos quanto seus mestres, contam com as armas da modernidade e o expertise dos papais do norte. 

Lotam os escalões governamentais de militares, impõe e articulam projetos de lei de vigilância digital total, com CPF em redes sociais e monitoramento permanente de navegação pelo governo através dos provedores de internet e, por fim, deixam claro que em sua democracia, quem fala por último são as armas. 

Tomam o poder de fato.

O oxímoro brincalhão ganha corpo em toda a história da nova república, uma democracia de fachada, tutelada pelos milicos sempre a espreita, mantida por uma guerra civil maquiada contra pretos e pobres, num regime político democrático fictício, que pinta uma falsa igualdade formal de todos perante a lei para maquiar uma sociedade dividida entre explorados e exploradores, onde a única realidade é a desigualdade real diante da propriedade e da legalidade burguesas, capitalistas.

Obviamente, um regime que é embelezado pelos bonitos discursos da "ouvidoria do capital", esta nova velha esquerda no comando da maioria de organizações como PSOL e Cia, sempre pronta a conduzir a indignação esporádica e inevitável do povo para promessas de "civilizar a exploração", bastando que "votem em nós". 

Os militares disseram que foram, mas, derrepente, voltaram; já são o poder.

Contra a ilusão democratista ingênua e estúpida quando sai das bocas oportunistas dos progressistas de vermelho desbotado ou amarelo solar sorridente ensinam que o poder, a única realidade de fato, não emana dos votos do sufrágio, desta abstração de soberania popular, mas das armas, da força e da propriedade. Como sempre foi e sempre será até o fim de todo poder.

Parte do balanço histórico ainda precisa ser feito e é na profundidade das consequências das decisões tomadas ao longo destes anos que encontraremos os nós dos dilemas atuais.

O abandono do pensamento estratégico voltado para eliminar o poder do capital e erguer um novo, dos explorados, conduziu nossa esquerda, de outrora e de agora, a um duplo caminho: a adaptação e integração total ao Estado, as regras do jogo e a legalidade e propriedade burguesas, sobrando apenas o papel de administrar a exploração abandonando a própria definição como esquerda, como no caso PTista; ou a uma existência de nicho, baseada nas classes médias e camadas superiores de trabalhadores com direitos, impotente, romântica, ingênua e domesticada pelas mesmas regras do jogo.

Uma esquerda sistêmica que, longe de negar o sistema, faz parte da dissidência planejada e controlada, que reafirma sua existência: uma espécie de encontro recorrente de Neo com o arquiteto da Matrix, pra usar um exemplo cinematográfico pop.

Divorciadas da maioria dos trabalhadores em todos os campos, do organizativo e ideológico ao vocabular, pisoteados como ideologia de uma elite numa bolha, as idéias revolucionárias tem uma longa e difícil caminhada para retornar ao caminho da vida real e material dos oprimidos.

Hoje são, no entanto, mais do que nunca, urgentes e necessárias.
A destruição da vida, a miséria, fome e genocídio são ocasiões presentes e dissolvidas num cotidiano de apatia e desmoralização, de negação de reconhecimento da própria condição de dominados.

Retomar a história de tantos como nós, que há algumas décadas apenas ousaram tomar seus destinos - bem como suas fábricas, terras e empresas - de forma prática, em suas mãos, realizando ações independentes dos exploradores, diretas, buscando criar um novo mundo e uma nova sociedade, é uma necessidade histórica, a condição cada vez mais evidente para a sobrevivência humana. 

Nas condições da periferia do capitalismo, este papo soa utópico, irreal, romântico. A barbaridade cotidiana é tão mais presente que a mera idéia de uma ação coletiva capaz de cessá-la soa ridícula e pouco realista. 

O que a história ensina, no entanto, é que grandes tragédias históricas promovem grandes questões existenciais e, mais do que nunca, a crise sem precedentes de uma economia em depressão e uma epidemia mortal colocam para nossa geração e as próximas a maior delas, a questão do futuro.

Toda grande questão receberá uma resposta, cedo ou tarde. 

Sabem disso aqueles que se antecipam, como nossos realistas militares, criando diques de contenção contra a revolta daqueles que, hoje por hoje, esqueceram de sua força real e se debatem na luta pela sobrevivência, ainda atemorizados por um poder que lhes parece natural, invencível, imutável. E por isso que não tomaram o poder com tanques na rua. Não precisam jogar a realidade na cara daqueles que, por ora, não enxergam seu papel no espetáculo.

Todos grandes sistemas econômicos e sociais enfrentaram essa situação. 
O poder dos senhores de escravos, dos lordes feudais, dos monarcas absolutos, todos, em seu tempo, por vezes por séculos e até milênios, ostentaram sua infalibilidade e seu direito inquestionável a existência.
Todos, como todas obras humanas, caíram sob os pés das próprias contradições.

O próprio fato de estarmos hoje refletindo sobre isto, demonstra que as contradições existem e corroem, pouco a pouco, os pés de barro de um sistema cuja existência contradiz as necessidades humanas. 

Que produz alimentos para três planetas, mas condena bilhões a fome; que produz moradia suficiente para todos, mas impede que todos a tenham; que alcançou um nível técnico capaz de suprir a todos um nível médio elevado de vida, mas condena bilhões a miséria permanente.

Diferentes dos demais, no entanto, o capitalismo terá de ter seus pés decepados, como obra consciente, dando lugar a um sistema surgido de suas entranhas. 

E é está a única saída histórica, a única fonte de energia, entusiasmo e vontade, com a qual podem contar aqueles trabalhadores privilegiados por terem contato com a história da luta dos oprimidos. É está a realidade dura por detrás de todas as crises enfrentadas por todos explorados no planeta.

De nenhuma maneira é inevitável que vençamos. A história não segue uma linha reta. O feudalismo, por exemplo, foi a expressão de um retrocesso de mil anos (!!!) em muitos sentidos, em comparação ao que foi o sistema dos romanos em seu ápice. A barbárie e desintegração estão sempre espreitando. 

Acostumados a tratar seus inimigos pela via de simplificações e caricaturas, os capitalistas e seus enganadores profissionais tentam pintar os comunistas, indignados e revolucionários como incendiários, agentes do atraso, da barbárie e do caos. 

Ao contrário. 
É na forja fervente desta campanha permanente de mentiras, imersos na angústia de uma sociedade que grita por mudança, mas ainda não produziu as ferramentas do parto do novo, que a história nos lança seu desafio: ou os revolucionários conquistam seu direito a existência e, assim, destroem os freios que impedem o progresso da humanidade e a manutenção da civilização ou a angústia tornará mais e mais degenerada a face da sociedade humana, até uma nova desintegração.

Entre a distopia e a utopia, há um caminho.

A da ação consciente, que pressupõe uma atitude científica e séria, um compromisso total com a vida da maioria da humanidade, a busca pela transformação social, indo até onde os fatos e a história nos levam e enfrentando suas consequências e desafios.

No Brasil, o primeiro deles é ousar chamar as coisas pelo seu nome. Separar os trabalhadores de toda a influência dos patrões, de seus valores mentirosos, dessa cada vez mais falsa esperança de realização pessoal pelo enriquecimento, a mentira da meritocracia, mesmo quando esses valores são propagados por gente que vem debaixo, de onde viemos.

Denunciar a hipocrisia da democracia capitalista e liberal e pacientemente, traduzir a experiência histórica em cada uma das lutas atuais imediatas, da enorme maioria preta e trabalhadoras onde estão as energias mais explosivas capazes de mudar tudo, conduzindo a uma só conclusão: a necessidade de um novo poder, um Estado dos trabalhadores e explorados erguido em cima da destruição das instituições e da legalidade capitalistas, baseado na democracia direta e autoorganizada nos bairros fábricas e locais de trabalho.
Onde a necessidade humana seja o motor da sociedade. Está é a única saída coletiva para a maioria. 

Para isto, coragem, coragem e mais coragem são os requisitos para seguir dando exemplos que nos aproximem mais e mais do momento da ofensiva, nacional e internacional, pelo poder.

Eles voltaram, é certo.
Mas nós ainda não fomos.




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