Elegia a dona Maria.
Quando chegamos aqui, muito antes da interdição, dona Maria nos recebeu desconfiada.
Do alto dos seus 90 anos, deve ter visto muita coisa. Passamos pelo portão e soltamos aquele bom dia de passagem, escoltados pela cabecinha idosa que seguia nossos passos até o final do corredor, balbuciando algo que não conseguimos entender.
No fundo, uma família, daquelas sisudas, estranhas, tipicamente disfuncional, pronta - e desejosa - pra foder alguém.
Não tinha nenhum luxo, mas encontramos nosso cantinho num dos 4 cômodos espremidos entre casas, tentando decifrar, como em toda mudança, os sinais dos arredores.
A família, estranhíssima, era dirigida por uma mulher, cabisbaixa, silenciosa, mas sempre atenta e observadora. Passava, dia após dia, por nosso portão sem falar nada. Quando, insistentes, lançávamos um tímido cumprimento, o soslaio ou silêncio reativo eram o máximo que alcançávamos. Deixamos de cultivar aquela postura padrão de cordialidade e se instalaria, nos meses seguintes, uma justificada beligerância silenciosa.
Triste. Ainda mais porque, na defensiva, não notaríamos a tempo que aqueles olhares, dessa vez não dos fundos, mas da frente, baixinhos e atentos, de Dona Maria, eram a expressão de um fio de apego a vida, uma curiosidade serena que se agarra ao fio de vitalidade, como de quem quer saber, entender, conhecer e até cuidar do outro.
Só fomos entender quando, lá pela quinta ou sexta passada ao lado da casa da frente, escoltados pela mirada penetrante, dona Maria nos chamou e ofereceu um bolinho, delicioso, recém comprado, provavelmente com o pouco dinheirinho que lhe restava para sobreviver ao fim destas 9 décadas.
Isso desarmou nosso estado. Conversávamos a cada nova passada, víamos o jardinzinho bem cuidado, as dezenas de plantas de diferentes espécies, regadas com esmero por aquelas mãos enrrugadas e atenciosas e trocamos bolinhos nos fins de tarde. Nos falava dos cocôs dos gatos da vizinha da frente, das plantinhas, da sua dor nas pernas, de suas caminhadas pelo bairro, sempre muito apressadamente, no corredorzinho que ligava nossas moradas. Nos levou uma vez um frango assado, delicioso, que tratamos de responder a altura, com um bolo de cenoura com cobertura de chocolate, que recebeu com aquele sorriso esforçado de portuguesa, com seus olhos espremidos entre as rugas volumosas.
Percebemos que, daquele gesto, quase uma relíquia comportamental esquecida, de carinho e troca, de um tempo passado, um tributo de amizade, Dona Maria queria viver, sentir-se viva e, assim, via sua vida através do outro, neste caso nós, estranhos, aos quais ela estava disposta a estender as mãos, mesmo que não tivesse muito a oferecer.
Em certo momento, a família dos fundos começou uma mudança. Foram para a casa do terreno ao lado lá na frente. O único que se comunicava conosco, o pai, mais velho, com feições trabalhadoras e uma fala que se desenrolava meio que sorrindo, meio envergonhada. Vivia tomando esporros da mulher, seguidas de um silêncio e da saída do filho mais velho e da filha do meio, ambos já jovens adultos. Vez ou outra víamos o caçula, quieto e retraído, correndo pra lá e pra cá no quintal dos fundos e, nos dias de mudança, passando, sempre curioso, nos olhando pela portinha de casa. Quando percebíamos que nos observava, ele corria derrepente, desviando o olhar. Devíamos ser pintados pela mulher como algum tipo muito estranho de seres humanos, o que, naturalmente, iria despertar a curiosidade e o receio naquele moleque.
A casa do fundo ficou vaga, o silêncio mais presente, mas sempre ainda podíamos contar com o olhar atento e as conversinhas agradáveis de dona Maria. Com o tempo, nossa hostilidade foi diminuindo e se tornando um conforto seguro, do qual tanto precisávamos.
Vez ou outra, como não podia ficar só, vinha à casa de dona Maria uma mulher, também mais velha, lá pelos seus 60 anos, limpar e cuidar dela. Fomos descobrir depois que era sua filha. Ouvíamos o som do aspirador, sentíamos os cheiros da comida nos domingos e começamos a ser cumprimentados também pela filha sempre que passávamos pelo corredorzinho. Era uma pessoa sorridente, bem humorada, mas com um que meio estranho, distante, até meio melancólico.
Foi numa noite. Não lembro se num fim de semana ou num dia normal.
Ouvimos na porta de casa nos chamarem. A filha, num ritmo lento e estranho, nos dizia que precisava de ajuda. Dissemos olá e perguntamos se estava tudo bem.
Dona Maria tinha caído nos degraus da frente de sua casa.
Corremos pra meter uma bermuda e roupas, abrimos o portão apressados e fomos pelo corredor. Já era noite.
Na porta de casa, dona Maria estava lá, de costas no chão, com metade da cabeça no jardim e os pés encostados no primeiro degrau.
Tomamos um susto enorme. Estabilizamos sua cabeça, seguramos firme seu corpo e fomos levantando pouco a pouco. Ela balbuciava, com seu sotaque português, alguma coisa sobre o portão frouxo, sua filha ser irresponsável, dor nas costas e outras coisas indicerníveis.
A levantamos pouco a pouco e fomos entrando por sua casa. Nunca estivemos lá. Era uma casa de vó, com armários de cozinha azuis, mesinha no centro de pernas de metal, com pisos que lembravam minha casa na infância.
A colocamos sentada. Nos pediu uma pomada em seu quarto. Lá vimos uma foto bonita, preto e branco, não sei se dela ou da filha, em cima da cômoda.
Nos pedia para passar a pomada em suas costas, que bateram no chão e ver se estava sangrando sua cabeça.
Fizemos com cuidado e vimos que não estava. Durante todo o tempo em que estivemos lá, quase uns 20 minutos, a filha desapareceu.
Acalmamos nossa velhinha, passamos mais pomadas, tranquilizamos e a colocamos no sofá. A filha, então, retornou. Teimosa, dona Maria ouviu dizermos pra ela ir ao hospital, já que uma queda, nesta idade, é séria. Não quis ir de imediato, mas parecia estar disposta. Queria dormir. Nos deu um abraço e, antes de sair, falamos com a filha pra levá-la, nem que no outro dia.
Nos falava sobre a teimosia da mãe, explicou por cima que ela tinha escorregado e agradeceu.
Ficamos preocupados.
Essa seria a última vez que veríamos dona Maria.
Algumas semanas depois, fomos saber que sofrera outra queda, desta vez dentro de casa. A filha nos contou, numa das passadas pelo corredor, que estava no hospital. Não tinha ido quando da primeira queda e, após a segunda, sentia fortes dores de cabeça.
Até perguntamos se estava recebendo visitas - e se estivesse gostaríamos de vê-la - mas não quisemos insistir, já que a família provavelmente estava ocupando todos os horários.
Daí pra frente tudo foi ficando mais estranho. A cada nova passada pelo corredor, um bom dia sorridente e formal, agora da filha. Nas primeiras vezes perguntávamos como estava Maria, ao que nos respondia que estava internada, mas que não ia visitá-la há dias. Achamos muito estranho a combinação.
Com o passar dos dias, fomos percebendo que estávamos sendo evitados. Não mais aparecia na janela e, com as semanas passando, dona Maria não voltava e não tínhamos mais notícia. Supusemos o pior.
Pior este confirmado quando, numa das passadas de corredor, ouvimos, de rabo de ouvido, a filha contar para a mulher da família, agora no terreno da frente, sobre o falecimento de Dona Maria. Ficamos tristes. Por tudo. Por não saber, não ter como ajudar, não ter sido avisados…
Mas não havia o que fazer.
Pouco tempo depois, se abateu a interdição. Preocupados com nossa própria segurança, organizávamos os meses que se seguiriam, buscando comprar e organizar nossa própria vida.
Num destes dias de preparação, ouvimos uma discussão na casa da frente. Era um homem, nervoso, gritando aparentemente com a filha e dizendo que ela deveria sair da casa o quanto antes. Não entendemos bem.
Nos dias seguintes, percebemos alguma movimentação entre a casa da frente e a de trás, mas, ocupados como estávamos e ainda trabalhando, não entendemos de início. Estranhamos quando, depois de um tempo, percebemos a casa de Dona Maria vazia.
Seguimos em nossa interdição, dia após dia, morte após morte, ansiedade atrás de ansiedade, sem saber quando acabaria.
Após algumas semanas começamos a ouvir alguns barulhos estranhos vindos da casa dos fundos.
Estranhos, já que não havia luzes nem ruídos muitos altos.
Foi apenas após 3 meses de reclusão que percebemos o que acontecia. Nos fundos, víamos a filha, vez ou outra, espiar pelo corredor, quando entrávamos e saíamos. De alguma forma estava vivendo lá, sozinha, sem luz e isolada.
Quando percebeu que a víamos, começou a sair. Achamos de início que para trabalhar, mas percebemos que os horários batiam com o do bom prato da região. Nas poucas vezes que cruzávamos, nos sorria e dava bom dia, sem tocar no assunto de dona Maria ou de sua própria condição. Mais semanas se passaram.
Num fim de semana qualquer foi quando percebemos, de fato, o que se passava. Ao sair de casa, alguns homens entraram no corredor pra ver as casas e, ao chega na casa dos fundos, falavam alto com alguém no telefone que havia ali um cadeado. Tentar tirá-lo, antes de tentar arrancar alguma coisa de nós que, de fato, sequer sabíamos de nada. Foram embora.
A filha provavelmente estava, nos seus 60 anos, pelo menos 3 meses ocupando a casa e sobrevivendo como podia.
Não tardou a tragédia a retornar.
Numa manhã comum, um homem batia em nossa porta. Saímos pra ver e perguntar o que queriam. Já conhecíamos o tipo.
Se identificou como policial e começou um interrogatório incisivo sobre quem morava ali. De pronto, já que não somos afeitos a colaborar ou se submeter a estes tipos, fincamos em vozes firmes que não sabíamos de nada e que nós apenas morávamos ali. Ligue a imobiliária e procure saber.
Ao perceber nossa firmeza, baixou o tom e balbuciou alguma banalidade sobre os perigos de ocupantes, terminando a nos dizer que estavam ele e sua delegacia a "disposição" caso percebêssemos algo estranho. Foi embora, mas não antes de quebrar o cadeado e jogar todos os poucos bens na casa dos fundos no meio do corredor.
Mais a noite, ouvimos outra voz. Era a filha, em prantos, dizendo que o pior tinha acontecido. Não estava bem. Falava versões contraditórias sobre os motivos, que sequer sabia quando sua mãe falecera, sobre a família que abandonara, como não podia voltar para sua cidade natal.
Não tínhamos como ajudá-la muito. Oferecemos um dinheiro para passagem ou um hotel para descansar e preparar seu retorno ou pedir ajuda a algum amigo e familiar. Nos agradeceu muito, mas disse que iria para a rodoviária, ver o que fazer.
Tão rápido quanto tudo ocorreu, ela se foi, deixando suas panelas, um quadro de Santa Terezinha e um colchão, ensopado da chuva que tomou na noite em que ficou exposto.
Semana passada, uns pedreiros entraram no corredor. Arrancaram todas plantinhas, ensacaram os pertences, jogaram na frente do portão lá fora e por fim, cimentaram o outrora chão, tão nutritivo e que recebera tanto cuidado de Maria. Só restou o quadro, espremido num canto de parede.
A família, atenta a tudo, depois disso se trancou. Vez ou outra o menino aparece numa janela embaçada, sumindo quando é visto.
O corredor voltou a ficar vazio.
E agora ninguém mais espia nossa entrada.
Quando chegamos aqui, muito antes da interdição, dona Maria nos recebeu desconfiada.
Do alto dos seus 90 anos, deve ter visto muita coisa. Passamos pelo portão e soltamos aquele bom dia de passagem, escoltados pela cabecinha idosa que seguia nossos passos até o final do corredor, balbuciando algo que não conseguimos entender.
No fundo, uma família, daquelas sisudas, estranhas, tipicamente disfuncional, pronta - e desejosa - pra foder alguém.
Não tinha nenhum luxo, mas encontramos nosso cantinho num dos 4 cômodos espremidos entre casas, tentando decifrar, como em toda mudança, os sinais dos arredores.
A família, estranhíssima, era dirigida por uma mulher, cabisbaixa, silenciosa, mas sempre atenta e observadora. Passava, dia após dia, por nosso portão sem falar nada. Quando, insistentes, lançávamos um tímido cumprimento, o soslaio ou silêncio reativo eram o máximo que alcançávamos. Deixamos de cultivar aquela postura padrão de cordialidade e se instalaria, nos meses seguintes, uma justificada beligerância silenciosa.
Triste. Ainda mais porque, na defensiva, não notaríamos a tempo que aqueles olhares, dessa vez não dos fundos, mas da frente, baixinhos e atentos, de Dona Maria, eram a expressão de um fio de apego a vida, uma curiosidade serena que se agarra ao fio de vitalidade, como de quem quer saber, entender, conhecer e até cuidar do outro.
Só fomos entender quando, lá pela quinta ou sexta passada ao lado da casa da frente, escoltados pela mirada penetrante, dona Maria nos chamou e ofereceu um bolinho, delicioso, recém comprado, provavelmente com o pouco dinheirinho que lhe restava para sobreviver ao fim destas 9 décadas.
Isso desarmou nosso estado. Conversávamos a cada nova passada, víamos o jardinzinho bem cuidado, as dezenas de plantas de diferentes espécies, regadas com esmero por aquelas mãos enrrugadas e atenciosas e trocamos bolinhos nos fins de tarde. Nos falava dos cocôs dos gatos da vizinha da frente, das plantinhas, da sua dor nas pernas, de suas caminhadas pelo bairro, sempre muito apressadamente, no corredorzinho que ligava nossas moradas. Nos levou uma vez um frango assado, delicioso, que tratamos de responder a altura, com um bolo de cenoura com cobertura de chocolate, que recebeu com aquele sorriso esforçado de portuguesa, com seus olhos espremidos entre as rugas volumosas.
Percebemos que, daquele gesto, quase uma relíquia comportamental esquecida, de carinho e troca, de um tempo passado, um tributo de amizade, Dona Maria queria viver, sentir-se viva e, assim, via sua vida através do outro, neste caso nós, estranhos, aos quais ela estava disposta a estender as mãos, mesmo que não tivesse muito a oferecer.
Em certo momento, a família dos fundos começou uma mudança. Foram para a casa do terreno ao lado lá na frente. O único que se comunicava conosco, o pai, mais velho, com feições trabalhadoras e uma fala que se desenrolava meio que sorrindo, meio envergonhada. Vivia tomando esporros da mulher, seguidas de um silêncio e da saída do filho mais velho e da filha do meio, ambos já jovens adultos. Vez ou outra víamos o caçula, quieto e retraído, correndo pra lá e pra cá no quintal dos fundos e, nos dias de mudança, passando, sempre curioso, nos olhando pela portinha de casa. Quando percebíamos que nos observava, ele corria derrepente, desviando o olhar. Devíamos ser pintados pela mulher como algum tipo muito estranho de seres humanos, o que, naturalmente, iria despertar a curiosidade e o receio naquele moleque.
A casa do fundo ficou vaga, o silêncio mais presente, mas sempre ainda podíamos contar com o olhar atento e as conversinhas agradáveis de dona Maria. Com o tempo, nossa hostilidade foi diminuindo e se tornando um conforto seguro, do qual tanto precisávamos.
Vez ou outra, como não podia ficar só, vinha à casa de dona Maria uma mulher, também mais velha, lá pelos seus 60 anos, limpar e cuidar dela. Fomos descobrir depois que era sua filha. Ouvíamos o som do aspirador, sentíamos os cheiros da comida nos domingos e começamos a ser cumprimentados também pela filha sempre que passávamos pelo corredorzinho. Era uma pessoa sorridente, bem humorada, mas com um que meio estranho, distante, até meio melancólico.
Foi numa noite. Não lembro se num fim de semana ou num dia normal.
Ouvimos na porta de casa nos chamarem. A filha, num ritmo lento e estranho, nos dizia que precisava de ajuda. Dissemos olá e perguntamos se estava tudo bem.
Dona Maria tinha caído nos degraus da frente de sua casa.
Corremos pra meter uma bermuda e roupas, abrimos o portão apressados e fomos pelo corredor. Já era noite.
Na porta de casa, dona Maria estava lá, de costas no chão, com metade da cabeça no jardim e os pés encostados no primeiro degrau.
Tomamos um susto enorme. Estabilizamos sua cabeça, seguramos firme seu corpo e fomos levantando pouco a pouco. Ela balbuciava, com seu sotaque português, alguma coisa sobre o portão frouxo, sua filha ser irresponsável, dor nas costas e outras coisas indicerníveis.
A levantamos pouco a pouco e fomos entrando por sua casa. Nunca estivemos lá. Era uma casa de vó, com armários de cozinha azuis, mesinha no centro de pernas de metal, com pisos que lembravam minha casa na infância.
A colocamos sentada. Nos pediu uma pomada em seu quarto. Lá vimos uma foto bonita, preto e branco, não sei se dela ou da filha, em cima da cômoda.
Nos pedia para passar a pomada em suas costas, que bateram no chão e ver se estava sangrando sua cabeça.
Fizemos com cuidado e vimos que não estava. Durante todo o tempo em que estivemos lá, quase uns 20 minutos, a filha desapareceu.
Acalmamos nossa velhinha, passamos mais pomadas, tranquilizamos e a colocamos no sofá. A filha, então, retornou. Teimosa, dona Maria ouviu dizermos pra ela ir ao hospital, já que uma queda, nesta idade, é séria. Não quis ir de imediato, mas parecia estar disposta. Queria dormir. Nos deu um abraço e, antes de sair, falamos com a filha pra levá-la, nem que no outro dia.
Nos falava sobre a teimosia da mãe, explicou por cima que ela tinha escorregado e agradeceu.
Ficamos preocupados.
Essa seria a última vez que veríamos dona Maria.
Algumas semanas depois, fomos saber que sofrera outra queda, desta vez dentro de casa. A filha nos contou, numa das passadas pelo corredor, que estava no hospital. Não tinha ido quando da primeira queda e, após a segunda, sentia fortes dores de cabeça.
Até perguntamos se estava recebendo visitas - e se estivesse gostaríamos de vê-la - mas não quisemos insistir, já que a família provavelmente estava ocupando todos os horários.
Daí pra frente tudo foi ficando mais estranho. A cada nova passada pelo corredor, um bom dia sorridente e formal, agora da filha. Nas primeiras vezes perguntávamos como estava Maria, ao que nos respondia que estava internada, mas que não ia visitá-la há dias. Achamos muito estranho a combinação.
Com o passar dos dias, fomos percebendo que estávamos sendo evitados. Não mais aparecia na janela e, com as semanas passando, dona Maria não voltava e não tínhamos mais notícia. Supusemos o pior.
Pior este confirmado quando, numa das passadas de corredor, ouvimos, de rabo de ouvido, a filha contar para a mulher da família, agora no terreno da frente, sobre o falecimento de Dona Maria. Ficamos tristes. Por tudo. Por não saber, não ter como ajudar, não ter sido avisados…
Mas não havia o que fazer.
Pouco tempo depois, se abateu a interdição. Preocupados com nossa própria segurança, organizávamos os meses que se seguiriam, buscando comprar e organizar nossa própria vida.
Num destes dias de preparação, ouvimos uma discussão na casa da frente. Era um homem, nervoso, gritando aparentemente com a filha e dizendo que ela deveria sair da casa o quanto antes. Não entendemos bem.
Nos dias seguintes, percebemos alguma movimentação entre a casa da frente e a de trás, mas, ocupados como estávamos e ainda trabalhando, não entendemos de início. Estranhamos quando, depois de um tempo, percebemos a casa de Dona Maria vazia.
Seguimos em nossa interdição, dia após dia, morte após morte, ansiedade atrás de ansiedade, sem saber quando acabaria.
Após algumas semanas começamos a ouvir alguns barulhos estranhos vindos da casa dos fundos.
Estranhos, já que não havia luzes nem ruídos muitos altos.
Foi apenas após 3 meses de reclusão que percebemos o que acontecia. Nos fundos, víamos a filha, vez ou outra, espiar pelo corredor, quando entrávamos e saíamos. De alguma forma estava vivendo lá, sozinha, sem luz e isolada.
Quando percebeu que a víamos, começou a sair. Achamos de início que para trabalhar, mas percebemos que os horários batiam com o do bom prato da região. Nas poucas vezes que cruzávamos, nos sorria e dava bom dia, sem tocar no assunto de dona Maria ou de sua própria condição. Mais semanas se passaram.
Num fim de semana qualquer foi quando percebemos, de fato, o que se passava. Ao sair de casa, alguns homens entraram no corredor pra ver as casas e, ao chega na casa dos fundos, falavam alto com alguém no telefone que havia ali um cadeado. Tentar tirá-lo, antes de tentar arrancar alguma coisa de nós que, de fato, sequer sabíamos de nada. Foram embora.
A filha provavelmente estava, nos seus 60 anos, pelo menos 3 meses ocupando a casa e sobrevivendo como podia.
Não tardou a tragédia a retornar.
Numa manhã comum, um homem batia em nossa porta. Saímos pra ver e perguntar o que queriam. Já conhecíamos o tipo.
Se identificou como policial e começou um interrogatório incisivo sobre quem morava ali. De pronto, já que não somos afeitos a colaborar ou se submeter a estes tipos, fincamos em vozes firmes que não sabíamos de nada e que nós apenas morávamos ali. Ligue a imobiliária e procure saber.
Ao perceber nossa firmeza, baixou o tom e balbuciou alguma banalidade sobre os perigos de ocupantes, terminando a nos dizer que estavam ele e sua delegacia a "disposição" caso percebêssemos algo estranho. Foi embora, mas não antes de quebrar o cadeado e jogar todos os poucos bens na casa dos fundos no meio do corredor.
Mais a noite, ouvimos outra voz. Era a filha, em prantos, dizendo que o pior tinha acontecido. Não estava bem. Falava versões contraditórias sobre os motivos, que sequer sabia quando sua mãe falecera, sobre a família que abandonara, como não podia voltar para sua cidade natal.
Não tínhamos como ajudá-la muito. Oferecemos um dinheiro para passagem ou um hotel para descansar e preparar seu retorno ou pedir ajuda a algum amigo e familiar. Nos agradeceu muito, mas disse que iria para a rodoviária, ver o que fazer.
Tão rápido quanto tudo ocorreu, ela se foi, deixando suas panelas, um quadro de Santa Terezinha e um colchão, ensopado da chuva que tomou na noite em que ficou exposto.
Semana passada, uns pedreiros entraram no corredor. Arrancaram todas plantinhas, ensacaram os pertences, jogaram na frente do portão lá fora e por fim, cimentaram o outrora chão, tão nutritivo e que recebera tanto cuidado de Maria. Só restou o quadro, espremido num canto de parede.
A família, atenta a tudo, depois disso se trancou. Vez ou outra o menino aparece numa janela embaçada, sumindo quando é visto.
O corredor voltou a ficar vazio.
E agora ninguém mais espia nossa entrada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário